Título: Lula e as políticas sociais: um passo à frente, outro atrás?
Autor: Marques, Rosa e Mendes, Áquilas
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2006, Opinião, p. A16
Governo tem agido contra o sistema de proteção social da Constituição de 1988
No início deste último ano do governo Lula, a política social ocupa lugar central na manifestação de suas lideranças e praticamente em toda a grande imprensa nacional. Em meio ao debate suscitado, privilegiou-se o Bolsa Família como programa que contribuiu para diminuir a desigualdade social e que, nas palavras dos professores italianos Antonio Negri e Giuseppe Cocco, constitui um embrião de uma renda universal e cidadã. Não há dúvida que o Bolsa Família melhora a situação de renda da população mais pobre. Mas será que esses professores sabem do que estão falando, considerando o contexto brasileiro? Para uma análise da política social do governo Lula, não seria absolutamente necessário referir-se também às suas ações junto aos outros ramos da proteção social brasileira? As características-chave da política social brasileira em nível federal - o Sistema Único de Saúde (SUS), a Previdência Social pública, o seguro-desemprego e o benefício de prestação continuada (BPC), concedido pela Assistência ao idoso de baixa renda e aos portadores de deficiência incapacitante - são resultado da democratização do país e da chamada Assembléia Constituinte Cidadã, de 1988, e integram a Seguridade Social, organização institucional da proteção social no país. Não é por acaso, portanto, que as manifestações dos defensores da política social do governo Lula não estão relacionadas aos benefícios, serviços e ações dos diferentes ramos da Seguridade. Embora sejam pagos e realizados pelo Executivo, no cumprimento da legislação, não constituem sua marca na política social. O governo Lula tem primado por tentar redefinir o conceito de saúde pública, insistindo, no momento da Lei de Diretrizes Orçamentária, em considerar como tal os juros, as despesas com inativos, o combate à pobreza, entre outros. Essas distorções, cujo resultado seria a redução dos recursos para o SUS, não se concretizaram, até o momento, por força da mobilização da Frente Parlamentar da Saúde, das instituições e das pessoas comprometidas com a saúde pública. No caso da Previdência Social, a contra-reforma previdenciária, que alterou as condições de acesso à aposentadoria dos funcionários públicos e o cálculo do valor de suas aposentadorias, introduziu ainda uma "contribuição" para os aposentados do serviço público e do setor privado da economia, desconsiderando totalmente os princípios definidores de uma contribuição. Além disso, em relação aos recursos da Seguridade, é sabido que o Ministério da Fazenda defende sua total desvinculação, visando, com isso, aumentar sua capacidade de ação, seja para pagar o serviço da dívida seja para realizar gastos de seu interesse.
Seria desejável que o governo Lula, além de divulgar resultados, se empenhasse em tornar o Bolsa Família um direito
Afora as tentativas e ações contra o sistema de proteção social saído da Constituição de 1988, a marca registrada do governo Lula no campo social é, sem dúvida, o programa Bolsa Família. Esse programa, união de vários anteriormente existentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás), em dezembro de 2005 atingia a totalidade dos municípios, abrangendo 8,7 milhões famílias. Em 2003, no seu início, quando "apenas" 4,1 milhões famílias recebiam seu benefício, a população atingida, considerando a média de pessoas por família em cada Estado, era de 16 milhões e 512 mil (Marques, R.; Mendes, A .; Guedes, M.; Hutz, A. "A Importância do Bolsa Família nos Municípios Brasileiros", Pesquisa. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, 2004). Nessa ocasião, 69,1% da população beneficiária estava localizada no Nordeste, a mais pobre do país. Nessa região, o número de pessoas beneficiárias desse programa varia de 13% a 45% do total da população, o que dá uma boa idéia da importância desse programa na sustentação da renda dos segmentos mais pobres. Comparado às receitas dos municípios, nelas compreendidas as de impostos mais as transferências federais e estaduais constitucionais (receita disponível), os recursos do Bolsa Família chegam a corresponder a 43%, como é o caso de 57 municípios do Nordeste. Mesmo em Porto Alegre, no sul do país, onde o nível de pobreza é bem mais baixo, os recursos recebidos por 5% de sua população equivalem a 2% da receita disponível, 6% das transferências federais para o SUS, 6% da arrecadação do ICMS e 31% dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios. Esses indicadores mostram quão importantes são os programas compensatórios na promoção da distribuição da renda e da atividade econômica nos recantos e nos segmentos populacionais mais pobres do país. Apesar disso, dois aspectos ficam a desejar no campo restrito deste programa, isto é, sem considerar os determinantes da geração e da manutenção da pobreza no país. Primeiro, os benefícios pagos pelo Bolsa família não derivam de um direito, de forma que podem ser extintos pelo simples ato de vontade do governo de plantão. Segundo, o acesso ao Bolsa Família é definido por uma renda per capita inferior a R$ 50,00, o que é sem dúvida muito baixo, muito aquém do per capita de R$ 75,00, caso fosse considerado o salário mínimo de R$ 300,00 como base de cálculo para uma família de quatro membros. Assinalar esses aspectos da política do governo Lula não implica, no entanto, desconhecer a realidade dos milhões de beneficiados dos programas de transferência de renda. Ao contrário, dentro de uma política de universalização dos diferentes ramos da proteção social, a garantia de renda tem lugar de destaque. Essa não só seria entendida como um direito, o que não é o caso atualmente, como deveria contemplar uma renda mínima, definida como a necessária para uma família viver com dignidade. Assim, seria desejável que o governo Lula, além de divulgar os resultados alcançados, se empenhasse em tornar o Bolsa Família um direito e em garantir que as famílias beneficiadas tivessem acesso, de fato, a uma renda mínima. Essa iniciativa constitui a complementação necessária ao atual formato do programa, o que o legitimaria no campo maior da proteção social brasileira.