Título: A prevenção e o combate aos cartéis
Autor: Pedro Zanotta
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"É mais do que razoável que as empresas se preocupem, uma vez que o ato de qualquer colaborador pode trazer sérias e graves repercussões"

O ano de 2005 foi bastante intenso no que diz respeito à atuação dos órgãos de defesa da concorrência. Tanto as Secretaria de Direito Econômico (SDE) e Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) do Ministério da Justiça como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) conseguiram reduzir os seus estoques de processos e os prazos de análise, mostrando inegável eficiência. Além disso, casos complexos e relevantes foram julgados, o que valoriza ainda mais o papel desses órgãos, que, por sinal, foram submetidos a uma auditoria da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e foram muito bem avaliados. E o Cade sofreu para ter quórum durante boa parte do ano, diante do número reduzido de seus membros (chegou a ficar com somente quatro em outubro) e dos impedimentos naturais. Desde o início de 2003, os órgãos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência vêm concentrando os seus poucos recursos e esforços no combate a práticas restritivas da concorrência, em especial os cartéis. Em 2005, tal esforço foi ainda maior, conseguindo destacar na mídia alguns casos de julgamento, como o do aço, o das pedreiras e o dos laboratórios farmacêuticos. Vamos focar como destaque de 2005 um caso, mais especialmente um ponto específico de um desses julgamentos. Em decisão recente, o conselheiro do Cade Luiz Fernando Rigato Vasconcelos, ao determinar a condenação das empresas pela prática de infração à ordem econômica, recomendou a elas que adotassem programas de prevenção em matéria antitruste como forma de melhor orientar seus empregados e dirigentes a respeito de práticas que possam caracterizar ilícitos concorrenciais. Nunca se falou tanto do tema cartéis no Brasil. Assim, é mais do que razoável que as empresas se preocupem com essa questão, uma vez que o ato de qualquer colaborador pode trazer sérias e graves repercussões, não só financeiras como também de imagem. No referido julgamento, que é de domínio público, o Cade decidiu pela condenação de mais de 20 laboratórios farmacêuticos por supostamente reunir seus gerentes e ter decidido boicotar distribuidores e fabricantes de medicamentos genéricos. A recomendação feita pelo conselheiro Luiz Fernando Rigato Vasconcelos nos permite deduzir que se os mencionados gerentes estivessem melhor orientados com relação ao que podem e ao que não podem fazer, seria possível evitar tal reunião e, mais importante, suas conseqüências também. Como, então, fazer um programa de prevenção capaz de distanciar as empresas de problemas decorrentes de tais práticas, que podem caracterizar uma infração às leis e normas que regem a concorrência? Ora, organizando-o de forma a treinar as pessoas chave da organização, fazendo-as entender com clareza o que pode ser feito, o que não pode e como proceder nos casos em que houver dúvidas. Um programa de prevenção deve começar com uma ampla auditoria em todos os procedimentos da empresa - relacionamento com concorrentes, com fornecedores, com clientes, com distribuidores ou revendedores e com suas associações de classe. Devem, ainda, ser analisados todos os contratos firmados que tenham, ainda que remotamente, efeitos concorrenciais. O programa deve ainda incluir um capítulo referente à retenção de documentos, bem como uma análise e recomendação quanto à melhor forma de redigir documentos, mesmo os internos. Esses trabalhos de auditoria devem gerar um relatório apontando as correções de rumo de alguns procedimentos ou ajustar a redação de um contrato, que possa dar base a alguma interpretação equivocada.

É fundamental treinar todas as pessoas-chave da organização, desde os diretores e gerentes até as equipes de vendas

Feita essa auditoria inicial, a empresa deve mandar elaborar (ou adaptar, se a sua matriz já tiver um programa equivalente) um manual de melhores práticas, que é um guia de comportamento que procura abordar todas (ou quase todas) as situações do dia-a-dia de seus colaboradores, mostrando como devem agir em cada uma delas. Esse manual é a principal ferramenta para o treinamento que se seguirá. É fundamental treinar todas as pessoas-chave da organização, desde os diretores, gerentes e advogados internos até as equipes de vendas, tele-marketing, suprimentos e expedição. No treinamento, onde os colaboradores devem ser separados por grupos mais homogêneos, devem eles em primeiro lugar tomar conhecimento do que diz a lei, em linguagem simples e acessível, de forma a poderem discernir quando confrontados com uma situação real que possa ser tida como problemática, do ponto de vista concorrencial. Depois desses fundamentos legais, passa-se ao conteúdo do manual de boas práticas, de forma que a todos fiquem claros os procedimentos recomendáveis e os que não são recomendáveis. Ou seja, o que podem e o que não podem fazer. Como dissemos, há ainda uma zona cinzenta na qual os colaboradores devem saber como trafegar, a quem procurar e consultar em caso de dúvida. Outro aspecto importante do treinamento é a discussão de casos práticos, onde os treinandos possam analisar e propor soluções para casos já julgados pelo Cade. Por fim, deve ser aplicado um teste, para medir o grau de assimilação. O programa termina com uma declaração, firmada pelos colaboradores da empresa, na qual afirmam ter sido orientados e treinados quanto à política adotada e as práticas recomendadas quanto à matéria antitruste, assumindo o firme compromisso de cumpri-las fielmente, sob pena de responsabilidade pessoal. É importante considerar também o que prevê a Portaria nº 14, de 9 de março de 2004, da Secretaria de Direito Econômico, que em bom momento criou o Programa de Prevenção de Infrações à Ordem Econômica (PPI). Se a empresa atender aos requisitos impostos pela portaria, pode submeter seu programa junto à SDE, que emite um certificado garantindo a sua conformidade e alguns benefícios, em caso de acusação de prática anticoncorrencial. Acredito que, com isso, os nobres objetivos do ilustre conselheiro Luiz Fernando Rigato Vasconcelos e do sistema estarão atingidos.