Título: A Cide, o desvio de recursos e o crime
Autor: Gilberto Baptista Martins
Fonte: Valor Econômico, 07/02/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"Os encargos, criados para garantir recursos para áreas estratégicas, oneraram a produção sem a devida contraprestação"

Não obstante o aumento da carga tributária, que desde a Constituição Federal de 1988 até o fim de 2005 cresceu 87,5% a mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) - era de 20% do PIB em 1980 e está em 38% atualmente -, correspondendo ao dobro da carga de nossos mais diretos concorrentes entre os países emergentes (China, Índia e Rússia), mais um tributo foi instituído em 2001 pela Lei nº 10.336. O novo tributo - a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) - destinava-se à intervenção no domínio econômico, relativamente às atividades de importação e comercialização de petróleo e gás natural e seus derivados e álcool combustível, sob o pressuposto constitucional de que os recursos arrecadados seriam obrigatoriamente destinados ao desenvolvimento das respectivas áreas, seja através de subsídios e de melhoria da infra-estrutura dos transportes, assim como da implementação de projetos ambientais, entre outros. Contudo, segundo levantamento no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), assim como por uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o governo federal vem utilizando os referidos recursos para outros fins que não aqueles definidos expressamente na Constituição, o que configura crime de responsabilidade. Constatou-se que, entre 2003 e 2004, o governo federal desviou 41% dos citados recursos e que, também em 2005, recursos foram utilizados para cobrir despesas com assinatura de TV a cabo, eventos culturais, serviços de segurança e diárias, auxílio-refeição, entre outras. Ou seja, os referidos encargos, criados sob o pretexto de garantirem recursos para áreas estratégicas, acabaram por onerar a produção e o custo do produto ao consumidor final sem a contraprestação devida. Ademais, cumpre salientar que qualquer contribuição federal é caracterizada por ser cobrada para uma finalidade específica, definida na Constituição, para certas áreas de interesse do poder público. No entanto, tem se tornado freqüente o desvio desses recursos, como é o caso da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), instituída com a finalidade única e exclusiva de arcar com os custos da saúde, assim como os chamados Fust e Fistel, que deveriam ser utilizados nas áreas de energia e telecomunicações, entre outros setores.

Constatou-se que entre 2003 e 2004 o governo federal desviou 41% dos recursos referentes à Cide

Assim, é estarrecedor constatarmos o crescente desrespeito de nossos governantes, administradores do bem público, com os valores de um Estado de direito, social e democrático, pactuados em nossa Constituição Federal, ao expropriar o patrimônio dos cidadãos pela usurpação das regras constitucionais. Se o Estado de direito é assim negligenciado por nossos próprios governantes, nada mais poderá advir daí senão uma relação anárquica, do "salve-se quem puder", entre os contribuintes e o Estado, fazendo lembrar as palavras proféticas de Raul Seixas: "É Tudo Mentira!" Portanto, nunca é demais frisarmos que a atual Constituição Federal - intitulada pela Assembléia Constituinte de então como a Constituição do Povo - nada mais é do que um contrato social com o fito de regular a administração de nossas condutas interpessoais, no qual os valores e desejos dessa sociedade são firmados para serem obedecidos e seguidos como a gênese auto-reguladora. Salienta-se, por fim, que já em 1690, em seu Segundo Tratado do Governo Civil, John Locke sustentava, em contraponto aos excessos da monarquia, que o Estado originara-se de um contrato social derivado do povo, e que em todo Estado civilizado o príncipe e a assembléia eram meros agentes a serviço dos cidadãos e deviam se submeter à lei básica natural dos direitos à vida, à liberdade e à propriedade, sob pena da legitimidade da revolta popular e da organização de um novo governo. Posteriormente, influenciadas pelas idéias de Locke, as antigas colônias inglesas, unidas, proclamaram-se independentes, e, em 1789, entrava em vigor a Constituição americana, ainda hoje vigente, a qual inspiraria os movimentos de independência de várias nações coloniais como o Brasil, a Revolução Francesa e sua Declaração de Direitos de 1791. Portanto, no momento em que constatamos o afastamento de investidores e uma grave retração econômica, ocasionados pela sanha fiscal que, infelizmente, é resultante de desvios da prática política, do caixa dois com dinheiro público, corrupção, falta de moralidade e eficiência na gestão do bem público, o nosso artigo 37 da Constituição Federal de 1988, que exige do administrador obediência à lei e moralidade no trato da coisa pública, há que ser elevado à valorização e controle máximos pelo Poder Judiciário. Assim, e uma vez que adotamos o sistema de freios de Montesquieu, só nos resta, contribuintes de fato e de direito, mola propulsora do PIB, esperarmos de nossas instituições respeito a nossas leis, para que o Estado de direito prevaleça e para que possamos obter oxigênio necessário para continuarmos a nossa sobrevivência econômica, sob pena de responsabilidade criminal do atual presidente da República.