Título: Duas oportunidades perdidas pelas CPIs
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 06/02/2006, Política, p. A5

O desfecho da longa novela das CPIs está próximo. Nascidas em meio a denúncias contra a base parlamentar que apoiava o presidente Lula, elas foram alimentadas nos primeiros meses por fatos e suspeitas que abalaram a credibilidade do governo e deixaram o país atônito - afinal, o PT havia prometido ser o paladino da ética, mas Delúbio e afins mancharam a principal bandeira do partido. A oposição e muitos formadores de opinião acreditaram que o projeto reeleitoral estaria sepultado, bastando para tanto que pessoas ligadas ao governo petista fossem execradas diariamente sob os holofotes da imprensa. Só que algumas coisas deram errado no meio do caminho, e além dos cálculos oposicionistas não terem se concretizado como eles sonhavam, o Brasil perdeu a oportunidade histórica de modificar as bases institucionais e políticas que permitem experiências como a do valerioduto. A formação das CPIs continha um erro fatal. Ter três comissões de inquérito funcionando ao mesmo tempo e sobre assuntos correlatos é um passo para a ineficiência da investigação. Esta perda de foco redundou em três conseqüências negativas: primeira, dificultou aprofundar o conhecimento sobre os fatos; segunda, aumentou o tempo de vida das CPIs, algo que tornou cada mais cansativo para o eleitor médio acompanhar o processo - e mesmo para muitos de nós que somos chamados de formadores de opinião -; e, terceira, multiplicou o número de interesses envolvidos, criando mais pontos de veto, o que contribuiu tanto para a morosidade das investigações como para o seu menor aprofundamento. A CPI que continha os temas propulsores da crise, a dos Correios, foi a que teve o melhor desempenho. Mas o fracasso das outras duas contaminaram-na junto à opinião pública. Um delas, a da Compra de Votos, não disse a que veio. Morreu sem ter produzido nada de relevante e mostrou que havia limitações para as investigações, uma vez que os episódios envolvendo a aprovação da Emenda da reeleição não foram investigados. O jogo de vetos - e fugas - entre o governo e a oposição explica este pífio resultado. A experiência da CPI dos Bingos, vulgo CPI do Fim do Mundo, deve ser fruto de reflexão para se repensar o papel institucional do Congresso Nacional. A comissão parlamentar tratou de diversos temas, inclusive díspares entre si, de forma rasteira e sensacionalista. O único fio de condutor entre os assuntos trazidos à baila é a necessidade de atingir o PT e o governo Lula. Se uma revista semanal, num bom ou mau trabalho jornalístico, descobrisse um fato que pudesse atingir os petistas, pronto, mais um assunto seria incluído na investigação. É óbvio que qualquer brasileiro com o mínimo de informação não consegue acreditar na versão dada para a morte do prefeito Celso Daniel. Mas a maneira como a questão foi abordada não ajudou a elucidação do caso. O fato é que quando a investigação perde completamente o foco e a Comissão Parlamentar vira apenas um instrumento político de crítica ao governo, o término do processo não realiza aquilo que cabe primordialmente ao Legislativo: propor formas de melhorar as leis e as instituições. O trabalho da CPI dos Correios, sem dúvida alguma, foi muito melhor do que o das demais. Porém, ela também revelou a fragilidade de boa parte dos congressistas no campo da investigação, confundida muitas vezes com o espetáculo diante das câmeras, e não ficou imune à limitação de atuação diante da história recente dos integrantes da classe política. A absolvição de Romeu Queiroz e a tentativa de fazer um acordo entre o PSDB, o PT e o PFL para salvar os deputados Roberto Brant e professor Luizinho já tinham acendido o sinal amarelo. Os casos de Duda Mendonça, marqueteiro de vários partidos e políticos, e da lista de Furnas - aparentemente um documento forjado como mecanismo de chantagem - mostraram na última semana que o sinal vermelho foi aceso.

Oposição deveria ter apostado em reformas

Duas oportunidades foram perdidas pelas CPIs, uma normativa e a outra estratégica. A primeira tem a ver com aquilo que a sociedade espera do Congresso Nacional: a criação de mecanismos institucionais que melhorem a qualidade da democracia. Obviamente que o eleitorado também quer a punição dos culpados, mas há uma sensação difusa e provavelmente correta de que nem todos os envolvidos com o valerioduto e outras maracutaias foram relacionados e julgados. Diante desse sentimento, o melhor que os congressistas podem fazer, particularmente os políticos de qualidade que querem livrar a Casa de qualquer "mensalão", é mexer nas causas do processo. Por isso, teria sido muito mais importante para o país fazer menos CPIs - uma só, na verdade - e mais curtas, que acendessem o alarme de incêndio sobre aqueles nefastos episódios, repassando a investigação ao Ministério Público desde logo. Assim, os congressistas poderiam se concentrar na aprovação de medidas que levassem à redução dos cargos em comissão, à profissionalização da gestão das estatais - e empresas como o IRB à privatização -, à transparência e barateamento das campanhas eleitorais, à rediscussão do papel dos fundos de pensão, para ficar nas principais causas da crise política. O Brasil perdeu a chance de diminuir a possibilidade de surgirem novos valeriodutos e a oposição desperdiçou a oportunidade estratégica de ganhar um discurso imbatível para 2006. Não que o presidente Lula e o PT não tenham sido atingidos, pois a classe média será um empecilho no segundo turno para o projeto reeleitoral. No entanto, o presidente ainda é um candidato fortíssimo. Ao privilegiar as acusações éticas contra os petistas e não a mudança do sistema que permitiu isso, os oposicionistas não perceberam que a campanha moralista, à UDN, é mais bem sucedida se for conduzida por uma liderança popular, se tiver apoio em segmentos sociais organizados e se o governo tiver um péssimo desempenho econômico e social. Estas três condições não existiam e, pior, o embate do "bem contra o mal" será complicado porque o "outro lado" também levantará histórias e suspeitas nunca investigadas, na maioria levianas, mas que numa campanha podem empatar ou ao menos reduzir o impacto da crise de 2005. A oposição teria ganhado mais se encurtasse o tempo de vida das CPIs e tivesse aprovado ou lutado para mudar o sistema político-administrativo. Teria uma bandeira imbatível, que caberia muito bem nas mãos de Serra ou Alckmin. Agora os oposicionistas terão para o eleitorado, sobretudo para a grande maioria pobre, uma força ética igual ou pouco maior do que o presidente Lula. E a esperança será depositada menos na moralidade e mais no estômago.