Título: Quem ganha com a produtividade dos EUA?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 06/02/2006, Internacional, p. A6

Conjuntura Trabalhadores americanos argumentam que não tiveram aumento salarial proporcional

A percepção generalizada é de que há algo de estranho no atual ciclo econômico americano. O crescimento da produtividade, apesar de um sensível declínio no fim de 2005, foi espetacular. Mas os trabalhadores não participaram dessa prosperidade: os salários foram arrochados, enquanto as empresas tiveram lucros recordes. Os motivos podem ser os baratos trabalhadores chineses, a disparada nos custos com saúde ou enfraquecimento dos sindicatos, mas a percepção comum é de que o atual boom de produtividade, diversamente de anteriores, trouxe escasso benefício ao cidadão comum. No último trimestre do ano passado, a produtividade caiu nos EUA 0,6%, representando alta nos custos trabalhistas de 3,5%. Essa dissonância entre aumentos salariais e crescimento da produtividade é motivo de muita discussão política atualmente em Washington. Os republicanos citam os ganhos de produtividade para argumentar que a economia está aquecida. Os democratas, por sua vez, destacam o fraco crescimento dos salários para argumentar que os EUA estão no caminho errado. Ambos os campos estão equivocados, porque comparar os crescimentos de salários e de produtividade é menos simples do que parece. Como ressaltam Ian Dew-Becker e Robert Gordon, dois economistas da Universidade Northwestern, em um novo estudo analítico*, grande parte da aparente dissonância é devida a razões puramente estatísticas. As duas mais citadas medidas de crescimento dos salários e da produtividade nos EUA - o crescimento dos salários reais por hora e da produtividade no setor não-agrícola (ambos publicados pelo Escritório de Estatísticas do Trabalho) -, nunca deveriam ser comparadas, embora freqüentemente sejam. Elas refletem diferentes setores da economia; os números referentes a salários-hora não incluem o valor de benefícios não-salariais, como o acesso a planos de saúde; e as duas medidas são freqüentemente traduzidas em termos reais usando deflatores distintos. Gordon é um destacado e controvertido dissecador do crescimento da produtividade. (Ele ficou famoso, no fim da década de 90 por afirmar que, segundo uma mensuração correta, os EUA não tiveram efetivamente uma revolução de produtividade fora do setor de informática. De lá para cá, ele mudou de opinião.) Neste estudo, ele e Dew-Becker sublinham que, medindo o crescimento dos salários e o crescimento da produtividade em base similar, os salários ficaram muito pouco aquém da produtividade desde 2001. Em outras palavras, a participação da mão-de-obra na renda nacional caiu, mas essa queda não anulou totalmente um substancial crescimento ocorrido no fim da década de 90. Na realidade, afirmam os autores, o quinhão da mão-de-obra foi maior no início de 2005 do que em 1997. De modo que seríamos um tanto "elásticos com a verdade", se afirmássemos que os trabalhadores americanos, de modo geral, não foram beneficiados com o recente boom de produtividade. Isso não significa, porém, que todos (ou mesmo a maioria dos) trabalhadores puseram em suas sacolas os frutos do crescimento mais rápido da produtividade. Quais trabalhadores foram beneficiados depende não apenas do quinhão global destinado ao fator trabalho, mas também de variações na distribuição de renda salarial. E é bem sabido que a desigualdade cresceu nos EUA, nas últimas décadas, em razão de as rendas - especialmente no topo -, terem disparado. Em que medida isso aconteceu é evidente no exame de uma série de dados construída por Emmanuel Saez, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e de Thomas Piketty, da Ecole Normale Supérieure de Paris. Esses economistas calcularam uma distribuição de renda de longo prazo nos EUA baseada em informações de restituição do imposto de renda. O mais recente estudo desses economistas mostra que o 1% mais rico dos americanos hoje recebe cerca de 15% de toda a renda, quando ficaram com apenas 8% nas décadas de 60 e 70. Praticamente todo esse crescimento veio de substanciais aumentos na renda do trabalho. A parcela apropriada pelo 1% mais rico está de volta a onde estava um século atrás. Mas, embora a renda da elite americana então viesse em larga medida do capital, os ricos hoje ganham seu dinheiro trabalhando. Dew-Becker e Gordon usam os dados baseados no imposto de renda e relacionam as variações na distribuição de renda com as mudanças no crescimento da produtividade entre 1966 e 2001. Eles concluem que, em média, os 90% menos ricos de trabalhadores americanos tiveram aumentos de salário real menores do que o crescimento da produtividade (na economia como um todo). Somente os 10% mais bem pagos tiveram aumentos reais, em sua remuneração, acima do crescimento médio da produtividade. E dentro desse grupo, os ganhos concentraram-se no estrato mais alto: mais de um terço dos ganhos desse decil foi para o 1% de pessoas mais bem remuneradas nos Estados Unidos. E além disso, Dew-Becker e Gordon verificaram que, durante o surto de produtividade no fim do período estudado, essa tendência de longo prazo persistiu. A parcela de renda do trabalho apropriada pelos 10% de trabalhadores mais bem remunerados cresceu ligeiramente, em comparação com o período inteiro. Mas a parcela apropriada pelo 1% mais bem pago cresceu substancialmente. A distribuição assimétrica dos ganhos de produtividade são, desta forma, menos um fenômeno novo do que uma tendência secular. Esses resultados poderiam não surpreender qualquer pessoa que tenha analisado detidamente a evolução da desigualdade de renda nos Estados Unidos. E há algumas falhas nesses resultados: Dew-Becker e Gordon consideram simplesmente que os benefícios não-salariais, que não aparecem nos dados baseados nas estatísticas do imposto de renda, têm similar participação nas rendas de todos os trabalhadores. Isso certamente infla a fatia estimada do bolo que vai para o prato dos mais ricos. A despeito disso, os resultados são surpreendentes - e levantam uma indagação adicional: o que está por trás desse aumento secular nas rendas mais altas? Mas sobre isso, o "guru da produtividade" é menos esclarecedor. A maioria dos estudiosos especializados em economia do trabalho julgam que a maior causa de crescente desigualdade salarial foi um aumento na remuneração a trabalhadores com melhores capacitação e formação educacional, graças, em larga medida, a mudanças tecnológicas. Gordon e seu colega discordam, argumentando, em vez disso, que o crescimento da remuneração de superastros - como jogadores de beisebol -, e pagamentos desenfreados a executivos-chefes, são razões mais plausíveis do crescimento da desigualdade. Pode haver alguma verdade nisso: os pacotes salariais dos atuais executivos e astros esportivos são de dar água na boca. Mas a explicação dos autores sobre isso é frágil; e essas pessoas são relativamente muito poucas para responder pela tendência que os autores identificaram. Ainda assim, o estudo deve aclarar uma discussão freqüentemente confusa. Esse debate continuará fervilhando.