Título: Haiti vira "beco sem saída" para o Brasil
Autor: Raquel Landim
Fonte: Valor Econômico, 06/02/2006, Especial, p. A10

Relações Externas País realiza eleições amanhã e especialistas dizem que é cedo para retirar tropas da ONU

Basta digitar Haiti no site de relacionamentos Orkut para encontrar dezenas de comunidades interessadas na missão de paz das Nações Unidas, liderada pelo Brasil, no país. Os soldados contam seu dia-a-dia. Muitas pessoas pedem notícias de familiares e amigos. Há discussões acaloradas sobre a missão, o papel do Exército, a cobertura da mídia. Numa das comunidades mais movimentadas, um internauta perguntou: "Qual é a expectativa para as eleições? Haverá violência? Pode ocorrer uma guerra civil?" Ninguém respondeu. Essas questões parecem sem solução não apenas para as pessoas comuns, mas também para os especialistas em defesa e política externa. Eles afirmam que a eleição não é uma "varinha mágica", mas um "termômetro" da situação do Haiti. Alguns temem que o país se transforme em um "beco sem saída" para o Brasil, dificultando a retirada das tropas a médio prazo. As eleições presidenciais do Haiti estão marcadas para amanhã, depois de terem sido adiadas quatro vezes. Inicialmente, o pleito deveria ter ocorrido em 8 de janeiro. A expectativa é uma vitória de René Preval, que foi assessor do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, deposto em 2004. Concorrem às eleições do Haiti 53 candidatos. Um dos objetivos da Força Militar da Missão da ONU para Estabilização do Haiti (Minustah) é garantir a realização pacífica das eleições. A Minustah é composta por 6 mil militares de diversas nações, incluindo Brasil, Argentina e Chile. O envolvimento da ONU com o Haiti vem desde 1993, dado o histórico conturbado do país. Em junho de 2004, as forças de Estados Unidos, França e Canadá foram substituídas pela Minustah. "Não dá para apostar tudo nas eleições. É um processo importante, mas não é uma varinha mágica", diz Reginaldo Nasser, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Ele ressalta que as eleições devem ser uma conseqüência da estabilidade política do país e não a causa. O professor de ciência política da Universidade Federal de São Carlos, João Roberto Martins Filho, está cauteloso. "As eleições não serão a solução política para o Haiti. O país está muito dividido e a política se mistura com a criminalidade comum", afirma. Sobrevivente de duas ditaduras sangrentas, o Haiti atravessa mais de uma década de instabilidade política e turbulência econômica. A crise social é profunda e endêmica. "O Haiti é um país, mas constitui um Estado?", questiona Eliezer Rizzo de Oliveira, diretor do centro de estudos do Memorial da América Latina. Nasser, da PUC, avalia que o Estado haitiano precisa ser reconstruído através de medidas sociais e aportes econômicos. Os especialistas atribuem muitas das dificuldades da missão à falta de ajuda financeira internacional. Do US$ 1 bilhão prometido, apenas US$ 324 milhões chegaram até agora. Os países doadores alegam que não há segurança de aplicação efetiva dos recursos. "Só que sem recursos não haverá segurança no país", aponta o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Hector Saint-Pierre. O objetivo de uma missão de paz é militar: manter a ordem e suspender o conflito. Só que no Haiti são necessárias ações policiais, para as quais os soldados não foram treinados. "É preciso reconstruir a polícia haitiana. Do contrário, será uma intervenção", diz Nasser. Ele explica que esse problema não está presente apenas no Haiti, mas na maioria das missões realizadas após a Guerra Fria. Quase não há atores políticos no conflito e o Estado está em desintegração. Os analistas acreditam que o Brasil aceitou a missão para aumentar suas chances de conseguir um assento no Conselho de Segurança da ONU. A estratégia brasileira foi arriscada. Segundo o professor da Unicamp Geraldo Cavagnari, o Brasil tem longa experiência em missões de manutenção da paz, nas quais o efeito é dissuasivo. No Haiti, é uma missão de imposição da paz, um ato real de guerra. Os especialistas relatam que, no início, a missão enfrentou problemas de logística: falha na comunicação entre os exércitos, transporte ruim, armamento inadequado para as regiões urbanas. Brasil, Argentina, Uruguai e Chile estavam acostumados a trabalhar com americanos e europeus. Mas a avaliação geral é que o desempenho da missão é bom, pois o Haiti está relativamente sob controle. Apesar disso, os especialistas estão preocupados com o futuro da missão e com a responsabilidade do Brasil. Eles duvidam que o governo brasileiro opte por retirar as tropas no curto prazo. "Depois das eleições, é preciso garantir que quem ganhou governe", diz Saint-Pierre. Deixar o Haiti rapidamente seria ruim para imagem do Brasil no exterior e para a moral das Forças Armadas. Rizzo defende que a retirada das tropas não deve ser unilateral e pode ocorrer apenas com o consentimento da ONU. Martins Filho acredita, no entanto, que, a médio prazo, será necessário encaminhar a retirada das tropas, pois falta ao Brasil capacidade para solucionar o problema haitiano sem a ajuda internacional. O problema é que, se as questões sociais não forem combatidas, existe o risco de uma convulsão social do Haiti com a retirada das tropas. "Antes da missão, não tínhamos nada a ver com o Haiti. Agora temos. Se houver violência após a saída dos soldados, será muito ruim para a imagem do Brasil. É um beco sem saída", alerta Martins Filho.