Título: A oportuna CPI das Privatizações
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, Opinião, p. A11

Há duas semanas, a Câmara dos Deputados instituiu uma CPI para investigar as privatizações ocorridas entre 1990 e 2002. Tanto pelo período a ser examinado, que deixa de fora as privatizações dos governos Sarney e Lula, como pelo apoio que recebeu dos partidos da base do governo, esta CPI foi vista como uma retaliação às revelações que levaram à crise política dos últimos meses. Uma análise menos engajada mostra, porém, que essa investigação oferece uma excelente oportunidade para se revisitar uma das reformas mais importantes mas menos compreendidas dos anos 90. Os trabalhos da CPI devem girar em torno de três temas: a busca de casos de corrupção na venda das estatais, a suposta concessão de favores para a compra dessas empresas e a alegada falta de benefícios da privatização para a sociedade como um todo. Uma das desconfianças sobre a privatização é que ela teria envolvido negócios escusos. Essa percepção não deriva de evidências concretas, mas de um sentimento difuso de que no setor público não se fazem operações vultuosas sem algum tipo de falcatrua, uma presunção de culpa fortalecida pelos achados das CPIs dos Correios e dos Bingos. Naturalmente, se algo de errado ocorreu, que se apure e aponte os culpados. Há, porém, razões para acreditar que essa desconfiança é infundada, pois nunca um programa público foi tão intensamente fiscalizado como o Programa Nacional de Desestatização (PND). A regulamentação do PND impunha diversos controles para garantir a lisura das operações, como a avaliação das empresas por diferentes consultores externos e a auditoria privada de cada processo de venda. Além disso, cada operação era fiscalizada pelo TCU, Ministério Público, Judiciário e imprensa, não apenas por dever de ofício, mas também pelo antagonismo que a privatização despertava em muitos membros dessas instituições. Essas investigações foram especialmente intensas durante o processo de impeachment presidencial, em 1992, motivado por acusações de corrupção no governo, quando foi feita grande devassa do PND. Também os partidos de oposição acompanharam o programa de perto, em uma fiscalização que se materializou institucionalmente em dois momentos. Quando da posse do presidente Itamar Franco, um opositor histórico do programa, o PND foi interrompido, analisado, investigado e, depois, retomado. Também nessa época foi instituída uma CPI das Privatizações - o que torna esta a segunda do gênero - sem que se apurasse nada de errado.

Ao eliminar a desconfiança que cobriu o PND, a nova CPI ajudará a elevar a popularidade da privatização e facilitar a sua retomada no próximo governo

Muitas das críticas à privatização envolveram o preço de venda das estatais, que se argumentava ser inferior ao dinheiro nelas investido pelo Estado. Isso ocorreu em vários casos, por duas razões principais: uma, pois muito dos recursos repassados a essas empresas se destinou a cobrir prejuízos, e não a agregar valor; outra, pois freqüentemente os investimentos eram orientados por critérios políticos, realizando-se a custos elevados e em locais distantes das fontes de matérias-primas e dos consumidores. Muitas dessas comparações também se limitavam a contrastar o preço de venda com o valor contábil dos ativos, "esquecendo" de considerar os passivos. Quem critica a privatização argumenta que os seus resultados ficaram aquém do prometido, tema que deve gerar acalorados debates na CPI. Mas em pelo menos três aspectos pode haver convergência. Um, que o desempenho das empresas melhorou muito após a privatização, mesmo em empresas como a Vale, considerada o paradigma da eficiência estatal. Dois, que não se materializaram as ameaças de que a privatização promoveria a desnacionalização da economia, um déficit estrutural nas contas externas ou uma perda líquida de empregos. Basta ver o aumento das exportações da CSN, Usiminas, Vale e Embraer, a melhoria das rodovias, ferrovias e portos, e o maior acesso aos serviços de telefonia para verificar que todo o país ganhou com a privatização. Três, que esta não é uma panacéia. Em especial, apesar de ter limitado a expansão da dívida pública, ela não é uma substituta para uma política fiscal austera, da qual o país continua carecendo. Ela também precisa ser complementada pela fiscalização das empresas privatizadas por agências reguladoras fortes e independentes, o que também continua faltando, particularmente depois que a seleção dos dirigentes dessas agências passou a se orientar por critérios partidários. Dada a natureza dos temas a serem investigados, o momento para a criação dessa CPI é especialmente oportuno. Ela é uma CPI da maioria, em um governo e uma Câmara de Deputados comandados pelo PT e o PC do B, cuja oposição à privatização é conhecida. Isso eliminará qualquer desconfiança de manipulação dos seus resultados. Além disso, ela ocorre passados alguns anos da conclusão das privatizações, o que facilita uma avaliação empírica dos seus impactos, reduzindo a subjetividade que marcou os debates até aqui. Também ajuda ela vir durante um governo ideologicamente identificado com a defesa do Estado empresário e na esteira da CPI dos Correios - que tem evidenciado os problemas de corrupção e gestão nas empresas estatais -, permitindo uma melhor comparação entre os custos e benefícios das alternativas privatistas e estatizantes. Em particular, as atuais CPIs mostram que a privatização reduz a corrupção no setor público, limitando a capacidade de dirigentes politicamente indicados usarem as estatais e seus fundos de pensão em proveito próprio e no daqueles que lá os colocaram, desmistificando a idéia de que as estatais se orientam pelo "interesse público". Pesquisa do Latinobarometro, em 2005, coloca o Brasil no segundo lugar na América Latina em termos da proporção de pessoas que consideram ter sido a privatização benéfica para o país. Ao eliminar o manto de desconfiança que historicamente cobriu o PND, a nova CPI contribuirá para aumentar a popularidade da privatização e facilitar a sua retomada no próximo governo. E o Brasil precisa disso, pois as razões que a motivaram nos anos 90 continuam presentes, como a necessidade de elevar os investimentos, melhorar a gestão das empresas e reduzir o espaço para a malversação de recursos públicos.