Título: Governo e montadoras travam guerra bilionária
Autor: Marli Olmos e Raquel Landim
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, Especial, p. A12

Tributação Receita ameaça cobrar R$ 9 bilhões de impostos atrasados

O governo brasileiro trava uma guerra tributária bilionária contra montadoras e fabricantes de autopeças nos bastidores das negociações do acordo automotivo entre Brasil e a Argentina. A Receita Federal acredita que as empresas se beneficiaram indevidamente, desde 2002, de uma redução do Imposto de Importação de peças, e quer cobrar, de forma retroativa, montante que pode chegar a R$ 9 bilhões, segundo estimado por técnicos do setor. Em torno de 60% disso caberia às montadoras e o restante aos fabricantes de componentes. A ameaça se transformou em poderoso instrumento de barganha do governo nas negociações com as empresas. Para fechar o novo acordo automotivo, montadoras e fabricantes de autopeças pedem que as autoridades do Brasil esqueçam a questão. Os fabricantes de veículos pretendem, ainda, tentar pedir os incentivos tributários de volta (ver matéria abaixo). As empresas querem evitar uma disputa judicial com o governo, pois teriam que fazer pesadas provisões de perdas em seus balanços, o que tornaria mais difícil convencer as matrizes a investir no Brasil. Representantes das empresas e dos governos voltarão a se reunir na próxima quinta-feira, em Buenos Aires. O livre comércio de veículos e peças no Mercosul estava previsto para este ano, mas a Argentina foi contra. Os dois países negociam um acordo transitório, que vigorará até o fim de junho. A partir de julho, começaria a valer um novo acordo. O Brasil possui duas legislações conflitantes sobre a importação de autopeças fabricadas fora do Mercosul. Em 14 de fevereiro de 2001, o país estabeleceu a redução de 40% no imposto de importação de peças. A regra passou a valer por meio de reedição de Medidas Provisórias. Mas acabou se transformando em lei por uma decisão do Congresso, que optou por transformar em legislações as MPs que não fossem rejeitadas em determinado prazo. "Foi um acidente de percurso", afirma uma fonte. Em 11 de dezembro de 2002, o Executivo internalizou, por meio de decreto, o acordo automotivo assinado com a Argentina. O tratado previa a elevação gradual do imposto de importação de peças. A Argentina seguiu a regra do acordo e elevou as tarifas de autopeças de fora do bloco, enquanto o Brasil manteve a redução de 40% do imposto até outubro do ano passado. O benefício só acabou depois de os argentinos protestarem contra a existência do redutor no Brasil. A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional emitiu parecer sobre a importação de peças no ano passado. O Tribunal de Contas da União enviou ofício para a Receita Federal. No documento, o TCU questionou se o acordo com a Argentina não teria revogado a lei que concedia o benefício. O órgão também levantou outra polêmica. Em 2001, a Argentina enfrentou forte crise e as empresas de autopeças locais passaram a exportar grandes volumes para o Brasil, ultrapassando o limite permitido pelo "flex". Esse mecanismo controla o intercâmbio de veículos e peças entre Brasil e Argentina. Hoje, para cada US$ 1 exportado com tarifa zero, é permitido importar do país vizinho o equivalente a US$ 2,6. Se a diferença for ultrapassada, é cobrada tarifa de importação cheia. O TCU questionou à Receita se as montadoras chegaram a pagar o Imposto de Importação devido em 2001 por ultrapassar o limite. A Coordenação-Geral de Administração Aduaneira (Coana) e a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) da Receita Federal emitiram uma nota técnica conjunta em resposta ao ofício do TCU. O Valor teve acesso ao documento. No texto, a Receita responde que os tratados internacionais revogam a legislação interna e que, por isso, o decreto internalizando o acordo teria revogado a lei que concedeu o benefício. Fontes da indústria argumentam que tentaram enquadrar suas importações às novas regras, mas não conseguiram. A Receita reconhece que não cobrou as tarifas de importação previstas no acordo com a Argentina porque faltaram recursos humanos para alterar os dispositivos do Siscomex, sistema eletrônico que faz a cobrança. Segundo o órgão, os contribuintes optaram por pagar o menor valor, porque a lei que permitia a redução do imposto não havia sido revogada. A Receita diz que os tributos devidos pelas companhias por ultrapassar o "flex" na importação vinda da Argentina em 2001 também não foram cobrados. No documento, datado de agosto de 2005, a Receita promete começar em 2006 um programa de auditoria fiscal das empresas beneficiadas pelo política automotiva do Mercosul. As empresas se preparam para enfrentar o pior. Há informações de que algumas regionais da Receita em São Paulo já estão prontas para a autuação. Existe pressão da indústria para que não haja diligências antes da reunião do Mercosul, no dia 9. Mário Luiz Oliveira da Costa, do escritório Dias de Souza Advogados Associados, discorda da interpretação da Receita. Ele argumenta que lei aprovada pelo Congresso não pode ser revogada por decreto do Executivo. O Sindipeças confirmou que as empresas estão preocupadas com eventual cobrança. A Anfavea prefere não se pronunciar por se tratar de uma questão jurídica não solucionada. A Receita e o MDIC não comentam o assunto.