Título: Os momentos decisivos do pacote
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

Os Bastidores Sarney decidiu que o Cruzado seria implantado menos de duas semanas antes de seu lançamento

Sexta-feira, 14 de fevereiro de 1986, gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto, pouco depois das 8h: o presidente José Sarney ouve seus ministros da área econômica, Dílson Funaro (Fazenda) e João Sayad (Planejamento) dizerem que a inflação já alcançara o patamar de 15% mensais e que era preciso fazer alguma coisa. Sarney, que pouco depois daria posse coletiva a seu novo ministério, deu o sinal: - Então nós vamos fazer aquele programa que vocês estão estudando, acabar com a correção monetária, a indexação. Vai ser agora, dia 28. Funaro, que não conhecia bem nem estava convencido da eficácia de um plano de reforma monetária, ainda tentou alternativas: - Chefe, ainda posso tentar alguma coisa em preço, segurar no CIP...

Sarney não topou:

- Não tem nada disso. Vai ser o plano todo, dia 28.

De certo modo, os ministros esperavam uma resposta assim desde o fim de 1985. Haviam mesmo cogitado de propor ao presidente o lançamento do plano no início de janeiro, mas desistiram diante da precariedade dos estudos. Em fevereiro, a situação não se alterara. Havia uma equipe trabalhando, mas ainda nada parecido com decretos, portarias, tabelas, cálculos. Na verdade, faltavam decisões cruciais, inclusive se haveria ou não o congelamento de preços. Era a partir desse ponto que a equipe dispunha então de 14 dias para preparar tudo. Na verdade, menos de 14. Era a semana pós-carnaval, os economistas do plano estavam quase todos viajando. Tanto que na segunda-feira seguinte à decisão de Sarney, dia 17, alguns não conseguiram chegar a tempo de pegar o jantar na casa do ministro da Fazenda em Brasília. E a reunião ainda foi de análise de alternativas. Funaro, sem abrir a data de 28 de fevereiro, colocou na mesa o que chamava de "plano menor" - um programa de pacto social com o objetivo de colocar limites aos reajustes de preços e salários, de modo a reduzir a inflação um pouquinho a cada mês. Foi bombardeado. Ao final, vencido, convocou jantar para o dia seguinte.

- Então está bom. Amanhã quero ouvir tudo, detalhe por detalhe sobre essa coisa aí de reforma monetária.

O jantar da terça, 18, foi na mansão do presidente do Banco Central, Fernão Bracher, no setor de chácaras em Brasília. Aí "a coisa" avançou. Trabalhou-se em cima de um memorando de Persio Arida, espécie de secretário-executivo do grupo do plano, que se reunia regularmente desde outubro do ano anterior. Ao final, já na madrugada de quarta, com a participação de toda a equipe, pontos básicos estavam definidos. Por exemplo: não haveria maxidesvalorização prévia; o câmbio seria fixo na nova moeda; conversão de salários pela média com abono de modo a se dar ganho real; taxa de juros, a vigente; caderneta de poupança recebendo a "eventual" inflação mais 0,5% real; controle de preços, via tabela com preços máximos, incluídos os da cesta básica e especialmente todos os itens que constavam do índice de inflação. Mas o que parecia bastante naquele momento se revelaria pouco nos dias seguintes. A nova moeda, por exemplo, às vezes aparecia como "novo cruzeiro", às vezes como "cruzado", recebido com ressalvas. O nome acabou definido só alguns dias depois, 25 de fevereiro, numa reunião para informar um grupo ainda limitado de ministros. Lá pelas tantas, Paulo Brossard, ministro da Justiça, anunciou: "Eis um cruzado". Ele tinha no bolso um cruzado de ouro, moeda que circulou em Portugal, em suas colônias e na Europa toda, durante quatro séculos, até 1854. Com tanta coincidência, não havia mais dúvida: cruzado e, pois, Plano Cruzado. Já a peça mais vistosa do programa, o congelamento de todos os preços e tarifas, só viria a ser definida no fim de semana de 22 e 23 de fevereiro, em reuniões em São Paulo, para despistar a imprensa. Até então, o pessoal ainda achava que seria possível promover uma incrível "dança de preços". Seria assim: por meio de diversos órgãos, o governo definiria listas de preços máximos, os quais seriam ajustados periodicamente, alguns preços subindo, outros caindo, de modo a se obter sempre um resultado zero. E os preços na nova moeda deveriam ser equivalentes à média real dos últimos dois anos. Claro, algumas tentativas de se fazer esses cálculos revelaram a total impossibilidade. Não havia a mínima informação. Como muita gente achava que o congelamento era necessário, inclusive o presidente Sarney, adotou-se uma medida que os economistas mais empenhados na reforma monetária com desindexação consideravam muito ruim. Esses, especialmente Persio Arida, ainda insistiram no congelamento curto, com data para terminar. Mas, cruzado na rua, fiscais do Sarney fechando supermercados, o congelamento tornou-se essencial e só terminou como os economistas mais críticos esperavam: com ágio, desabastecimento e câmbio negro. Assim, o congelamento de preços e tarifas, mas não de salários, foi uma decisão prática e política. Prática porque não havia como controlar preços de outro modo. E política porque "é tudo que a população quer, acabar com a carestia", como dizia Sarney na noite de 24 de fevereiro, numa reunião sigilosa no Palácio do Alvorada, para apresentação do plano a um grupo de ministros. Nesse encontro, fez-se também uma avaliação política nada animadora. O governo Sarney estava em crise, o PMDB, força dominante, já o estava abandonando. A inflação elevada erodia a popularidade do presidente. Nessas circunstâncias, seria razoável adotar um plano econômico tão radical e lançado assim de surpresa, sem negociações com as bases políticas, até aquele momento sequer informadas? Não seria melhor esperar um pouco e tentar obter mais apoio?

Sarney deixou claro que não tinha alternativa:

- Se der certo, ótimo para o país. Se der errado, vêm as Diretas-Já e também estará bom. Se não pudermos combater essa inflação, todo o resto que pudéssemos fazer seria besteira. Os senhores, portanto, preparem tudo. Nós vamos assinar dia 28. Fez-se silêncio na sala. Para a equipe econômica ficou claro que não tinha mais volta. E o chefe do SNI, general Ivan de Souza Mendes, ainda avisou:

- O presidente joga seu mandato nesse plano.

O temor de que desse tudo errado levou a outras decisões que seriam as sementes do desastre. É o caso do abono salarial. A idéia era converter os salários pela média real dos últimos seis meses, o que seria tecnicamente neutro. Mas poderia não parecer, de modo que se decidiu dar um abono em cima da média, que seria ganho real. O abono começou em 2%, foi a 4% e chegou no dia 28 de fevereiro, no lançamento do plano, a 8%, com o dobro disso para o salário mínimo. Preços congelados, inflação zerada, salários não mais corroídos e com ganho real - deu no que tinha que dar, uma demanda superaquecida. Faltou tampinha de cerveja. Mas foi bom enquanto durou. Tão bom que demoraram a perceber que estava desmoronando. Sarney não havia entendido direito quando, tudo perdido, despediu-se do demissionário João Sayad, em 17 de março de 1987:

- Tínhamos tudo na mão e perdemos tudo. Como é que fomos perder o Cruzado?