Título: Um esforço desesperado
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

O Argumento Primogênito da linhagem dos "choques heterodoxos" que assolaram o Brasil na segunda metade da década de 80 foi uma tentativa para conter o descontrole inflacionário

O ano de 1979 marca o início do fim do padrão de financiamento externo que sustentou, por mais de uma década, o crescimento e o precário regime de "baixa inflação" na América Latina. Em outubro de 1979 o chairman do Federal Reserve, Paul Volker, decidiu impor ao mundo, e particularmente aos países devedores, a carga da defesa do dólar e da estabilização da economia americana. O enfraquecimento do dólar como padrão monetário internacional obrigou os Estados Unidos a um exercício extremo de poder, concentrado na defesa da função de reserva universal de sua moeda nacional. A origem do processo inflacionário crônico e assustadoramente instável que abalroou o Brasil no início dos anos 80 estava radicada no colapso do financiamento externo e na grave crise fiscal que acompanhou a "crise da dívida". Primogênito da linhagem dos "choques heterodoxos" que assolaram o país na segunda metade da década dos 80, o Plano Cruzado foi um esforço desesperado para conter o descontrole inflacionário. A teoria da inflação inercial ignorou as causas e atacou os sintomas, ao bloquear, mediante o congelamento geral e irrestrito, a escalada dos preços. Em sua essência, a teoria chamava a atenção para uma dimensão importante dos processos inflacionários crônicos e com taxas elevadas. Temerosos da aceleração inflacionária, os agentes econômicos buscam desenvolver estratégias defensivas concretizadas em regras contratuais e práticas de formação de preços destinadas a preservar o valor "real" de suas receitas. Empresários, trabalhadores e rentistas, na esperança de escapar à erosão monetária, procuram fixar seus rendimentos em termos reais, por meio da indexação ou da referência a uma divisa estrangeira. Racionais em seu comportamento privado, coletivamente jogam água no moinho satânico da hiperinflação e promovem a destruição do padrão monetário. Uma corrida de perdedores. Os planos heterodoxos adotados no Brasil conseguiram evitar a explosão imediata da hiperinflação, implícita na exasperação e "aperfeiçoamento" dos métodos de indexação. Mas a reiteração do fracasso fazia crescer a desconfiança do público na possibilidade de uma estabilização duradoura. O maremoto de desconfiança coletiva obrigou o governo a recorrer à emissão de moeda indexada para impedir a "dolarização" das receitas e dos patrimônios, ante-sala da hiperinflação aberta. Tais estratégias de administração monetária pretendiam manter a confiança dos proprietários da riqueza líquida na preservação de seu valor, ao mesmo tempo em que alimentavam a descrença no padrão monetário. A moeda e a confiança nela são fenômenos coletivos, sociais. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção, dos pagamentos, é, portanto, refém de uma incerteza congênita. Os mais otimistas garantem que a reprodução estável de uma economia monetária depende da capacidade de o Estado manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores privados. Os agentes privados têm de acreditar nessa convenção precária e transformá-la numa âncora natural, num centro de gravitação de suas decisões, girando como a Terra em torno do Sol. A estabilidade é produto da "ilusão monetária", estado de alma que torna possível à moeda cumprir simultaneamente suas funções de unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor. Não se deve esquecer que o sucesso das políticas de estabilização depende do convencimento do "público" na solidez do "novo" regime monetário e fiscal. Se os protagonistas da cena econômica que tomam decisões relevantes - quanto a preços e composição de riqueza em suas carteiras de ativos - ampliam o lapso de tempo durante o qual estão dispostos a não rever as decisões, há uma clara indicação de confiança no novo regime monetário-fiscal. Essa mudança no estado de convenções e de expectativas significa também, sobretudo no rescaldo de uma hiperinflação, que a moeda recuperou, dentro do novo regime, suas funções cruciais de padrão de preços e contratos e de "medida" geral da riqueza e dos valores patrimoniais. Os anos de profunda instabilidade macroeconômica forjaram comportamentos próprios de um brutal encurtamento do horizonte temporal das decisões de preços e das formas de acumulação de riqueza. Tal situação limita severamente os poderes da política monetária. A limitação se traduz na incapacidade de construir um ambiente econômico que encaminhe as decisões privadas ao investimento produtivo e à fixação de preços fundada nos critérios de custo de produção e de margens "normais" de lucro. O Plano Cruzado foi um exemplo dos limites de uma política de estabilização empreendida sob forte restrição do balanço de pagamentos. O plano decretou o congelamento de preços, inclusive do câmbio, e a desindexação da economia, mas foi fulminado pelas "virtudes" da queda súbita da inflação: a mudança de composição da riqueza dos agentes líquidos, a recuperação abrupta do poder de compra dos salários e a restauração do crédito. Diante da queda das taxas de juros nominais, os ricos deslocaram recursos das aplicações financeiras para a compra de ativos reais, bens importados, dólares no mercado paralelo; os mais pobres dedicaram-se a recompor suas cestas de consumo. As pressões sobre o balanço de pagamentos não demoraram. Os programas ditos heterodoxos demonstraram a impossibilidade de estabilização numa situação de estrangulamento externo. A dolarização e sua sombra, a moeda indexada, exprimem a fraqueza do Estado nacional periférico e a natureza hierárquica das relações entre as moedas na economia mundial. Isso significa que são sempre problemáticas as relações entre as moedas nacionais "fracas" - no sentido de que não gozam de boa ou nenhuma reputação como instrumentos de denominação ou de liquidação de transações internacionais - e o standard universal. A substituição por outro padrão de referência, como uma moeda estrangeira forte, corresponde à busca desesperada de proteção para a riqueza e para os contratos que sustentam sua posse. Mas a instabilidade cambial é, ela mesma, um componente fundamental da crise. A investidura das funções monetárias na divisa estrangeira, mantida a crise cambial e, portanto, a escassez de financiamento externo, pode desencadear a hiperinflação. O recurso à dolarização corresponde, na verdade, ao desdobramento das crises de impotência do Estado, que culmina na destruição da moeda nacional. Por isso, o fim das "grandes" inflações européias nos anos 20, as reformas monetárias do segundo pós-guerra e os programas de estabilização dos anos 90 na América Latina tiveram o amparo decisivo e insubstituível dos empréstimos externos de estabilização ou da restauração do financiamento em moeda estrangeira, o que permitiu fixar o câmbio nominal e regenerar a função primordial da moeda, a de unidade de conta.