Título: Vitória de Pirro... ou do Cruzado
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

O Contraponto Todas as tentativas fracassadas de combate à inflação anteriores ao Real ainda custam caro ao país

O que você diria de um plano contra a inflação no qual a Polícia Federal é convocada a caçar bois nos pastos, usando helicópteros, e em que carros novos têm de ser oferecidos no mercado a preços menores do que usados? Acertou quem respondeu que um plano desses deve ter problemas de concepção. Podem-se enumerar vários planos de estabilização da inflação no Brasil desde o início do governo militar: o Plano de Ação Econômica do Governo Castello Branco, o Paeg (1964), o Cruzado (1986), o Plano Bresser (1987), o Plano Verão (1989), o Plano Collor (1990), o Plano Collor II (1991) e, finalmente, o Plano Real (1994). Na fase de experimentalismo mal-sucedido que foi do Cruzado ao Collor II, o país passou por um cataclismo legislativo na área econômica. Proliferaram tablitas, modificações de vetores de preço para cálculo de índices de correção monetária, controles de preços e/ou salários, mudanças de regime monetário, congelamento de ativos financeiros, confisco de correção monetária etc. Dentre os planos citados, destacaram-se, pelo bem ou pelo mal, o Paeg, o Cruzado, o Collor e o Real. O Paeg foi um plano bem-sucedido, por meio do qual se reduziu a inflação anual de 91,9% em 1964 a 15,5% em 1973. É do Paeg a positiva e criativa idéia de passagem dos salários à média, também utilizada pelos demais planos - exceto o Plano Bresser. A utilização desse princípio mostrou-se correta no Real, mas incorreta nos demais planos, pela falta de sustentação fiscal e monetária. O Plano Collor destaca-se pelas conseqüências negativas do congelamento de ativos financeiros, fato que afeta (negativamente) o comportamento dos agentes econômicos até hoje. O Real, por sua vez, tem-se destacado positivamente pelo sucesso no combate à inflação, fato no qual teve decisiva ajuda, a partir de 1999, da Lei de Metas de Inflação. Todas as tentativas fracassadas de combate à inflação anteriores ao Real, incluindo as experiências que vão de 1979 a 1986, certamente custaram e ainda custam caro ao país. A quebra de crescimento do PIB nos acompanha desde os anos 80. O crescimento médio anual da economia foi de 5,68% entre 1900 e 1980, e de apenas 2,11% entre 1980 e 2004. Se a economia brasileira tivesse mantido, a partir de 1980, sua tendência histórica de crescimento, observada desde o início do século, nossa renda per capita em 2004 teria sido em torno de 52% superior àquela observada. Ou seja, uma renda per capita, usando-se a cotação média do dólar em 2004 (R$ 2,926), em torno de U$ 5.243, em vez dos U$ 3.449. O insucesso do Plano Cruzado representou um dos custos que o país teve que pagar para aprender que desindexação apenas não estabiliza os preços. A lição era de conhecimento dos formuladores do Paeg, plano no qual o déficit fiscal foi devidamente reduzido de 3,1% do PIB, em 1964, a 1,1% do PIB, em 1966. Mas não, ao menos com a necessária convicção, dos formuladores do Cruzado. Nesse sentido, o tempo gerou engenharia às avessas, com perda de conhecimento acumulado. Uma prova da falta de atenção intelectual dos formuladores do Cruzado para o que viria a ser o seu calcanhar-de-aquiles, o descaso pelo lado da demanda (moeda e gastos), pode ser encontrada no livro "A Ordem do Progresso" (Campus), em que se encontram artigos de diversos membros da PUC-Rio. No texto "Estabilização e Reforma: 1964-67", um dos "pais do Cruzado" afirma: "Se o Paeg diagnostica a causa da inflação corretamente no conflito distributivo e se tem o poder de solucioná-lo pela via autoritária da intervenção direta na determinação dos salários, pergunta-se então por que insistiu na política fiscal e monetária restritiva de caráter ortodoxo. Tal prática, além dos custos sociais da compressão salarial, provoca crise de estabilização e todos os custos da ortodoxia". Os fatos que se seguiram ao Cruzado encarregaram-se de responder a esse economista: porque, se assim não for, não dá certo. Na década de 80 houve confusão entre dois conceitos: inércia inflacionária e inflação inercial. Inércia inflacionária representa a dependência da inflação passada, seja por causa de regras de indexação de preços e/ou salários, ou comportamentos baseados em expectativas calcadas no passado. Trata-se de fato corriqueiro em economias com alta inflação. A bem da verdade, deve-se dizer que os economistas não-heterodoxos que conduziram a economia entre 1981 e 1986 pecaram por falta de iniciativa para combater a inércia inflacionária, a exemplo do que havia feito o Paeg. O reverso da medalha foi dado pelos economistas heterodoxos que tomaram o poder a partir de 1986. Criaram o conceito heterodoxo de "inflação inercial". Tratava-se de uma inflação que poderia ser debelada com medidas de política econômica calcadas fundamentalmente no lado da oferta. Não que a demanda não fosse contemplada. Mas achava-se que a elevação da senhoriagem e a queda das perdas de arrecadação de impostos decorrentes da queda da inflação ("efeito Tanzi às avessas") resolveria o problema do déficit público. Evidentemente, havia um erro no raciocínio no que tange à senhoriagem, pois tratava-se de mera realocação de portfólio da parte dos agentes econômicos, elevando-se encaixes reais e reduzindo-se moeda remunerada. O efetivo ganho fiscal não seria do aumento real da quantidade de moeda (algo da ordem de 4% do PIB), mas apenas dos juros reais anuais poupados com a queda da moeda remunerada (em torno de 0,4% do PIB). Quanto à redução do Tanzi às avessas, cabe lembrar que uma legislação passada ainda em 1985 já houvera reduzido as defasagens de arrecadação, de forma que o ganho de arrecadação com a queda da inflação não foi tão grande. Superestimaram-se os ganhos fiscais. No artigo "O Plano Cruzado Frente às Reestimativas do Déficit Operacional entre 1984 e 1987", publicado pela "Revista Brasileira de Economia" em 1990, alertei para o fato de que as estimativas de déficit operacional divulgadas pelo governo entre 1984 e 1987 em muito subestimavam essa variável, quando calculada pela ótica do endividamento. Os números do déficit operacional como percentual do PIB foram de, respectivamente, 2,7%, 4,3%, 3,6% e 5,5%. Calculados no artigo pela ótica do financiamento, obtive, também com percentual do PIB, respectivamente, 6,6%, 7,0%, 3,6% e 7,8%. À época, estudos de Joaquim Toledo (USP) e do Banco Mundial, obtiveram conclusões semelhantes. Ao não realizar o "dever de casa" fiscal e monetário, o Cruzado deixou a descoberto a necessidade de reposição do imposto inflacionário, que alcançara algo em torno de 2,1% em 1985 (Simonsen e Cysne, "Macroeconomia", Editora Atlas, 1989). Como não poderia deixar de ser, nessas circunstâncias, a inflação retornou com toda a força, alcançando 416% em 1987, contra os 235% de 1985. Se o rei Pirro, de Épiro (que disse, frente às elevadas baixas de seu exército após uma batalha: "Com mais uma vitória como esta, meu reino estará perdido"), não tivesse existido, o termo "vitória de cruzado" bem que poderia ter tomado, no dicionário, o lugar de "vitória de Pirro".