Título: PMDB elegeu 22 governadores
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

O Epílogo Plano Cruzado teve forte viés eleitoreiro e, seis dias depois de realizado o pleito, não impediu que viesse o Cruzado II, uma tentativa desesperada de corrigir aquilo que, sabia-se já, não tinha mais correção Dentre as muitas controvérsias que ainda cercam o Plano Cruzado, há pelo menos um consenso: o fator político foi fundamental para impedir os ajustes que os pais do plano consideravam essencial que fossem feitos pouco tempo depois - o descongelamento de preços, pensado para durar no máximo alguns meses, e a contenção da demanda, principalmente por meio da redução dos gastos públicos, mas também pela retirada de poder de compra da população ou pelo menos de parte dela. A partir daí, já surgem divergências de entendimento sobre as razões para que a política tenha impedido que a economia seguisse o rumo traçado pelos jovens tecnocratas que imaginaram uma solução heteredoxa para a inflação. Ao longo desses 20 anos, consolidou-se a idéia de que o congelamento foi espichado ao máximo para que o então presidente José Sarney e o PMDB, partido majoritário de sua base e no qual ele entrara recentemente, vencessem as eleições. Essa é, por exemplo, a opinião do cientista político Bolívar Lamounier, que aborda o tema em seu mais recente livro, "Da Independência a Lula". "Não tenho dúvida de que os interesses político-eleitorais foram decisivos nessa questão", diz Lamounier, lembrando, por exemplo, o "episódio pitoresco" do desabastecimento de carne, evidenciado bem no meio da campanha eleitoral. "Candidato ao governo de São Paulo, Orestes Quércia foi a Brasília encenar sua insistência com o presidente Sarney para que ele mandasse 'pegar boi gordo no pasto', mas não liberasse os preços", afirma o cientista político. Já em março - o plano fora lançado em 28 de fevereiro -, trabalhava-se no descongelamento. Quando, em abril, o ministro da Fazenda, Dílson Funaro, falou pela primeira vez nessa possibilidade, virou manchete dos jornais. Foi prontamente desmentido pelo porta-voz do presidente, Fernando César Mesquita. Mas para Lamounier e muitos outros observadores, a maior evidência do peso que os cálculos políticos tiveram no adiamento dos ajustes deu-se na famosa "reunião de Carajás", convocada por Sarney para os dias 30 de maio e 1º de junho, na distante serra dos Carajás, para fazer uma avaliação do plano. Ali, conforme relato de Carlos Alberto Sardenberg, assessor de imprensa do então ministro do Planejamento, João Sayad, no livro "Aventura e Agonia nos Bastidores do Cruzado", o presidente bateu o martelo contra a intenção dos criadores do plano - Persio Arida e André Lara Resende. "Os dois queriam extinguir o congelamento e impor um arrocho fiscal", diz Sardenberg ao Valor. "Nos dois casos, eram medidas politicamente ruins." Elas vieram só muito depois, pela metade, e, claro, não funcionaram. Passados apenas seis dias do pleito de 15 de novembro de 1986, foi lançado o Cruzado II, uma tentativa desesperada de corrigir o que não tinha mais correção. O sucesso eleitoral já havia sido alcançado, porém. O PMDB conquistou uma vitória espetacular. Elegeu os governadores de 22 dos 23 Estados que havia então. Obteve 47,8% dos votos para a Câmara Federal, onde amealhou 260 cadeiras, 53,4% das 487 existentes à época. O triunfo do governo foi complementado ainda com o desempenho do PFL, que elegeu o 23º governador, o de Sergipe, e 118 deputados federais, 17,7% do total. Mas teria sido tudo fruto do cálculo político-eleitoral de Sarney e do PMDB, este comandado por Ulysses Guimarães? Muita gente pensa que sim, outros tantos, que não. Quércia, que foi eleito governador de São Paulo naquela onda cruzadista, credita o adiamento dos ajustes a uma decisão pessoal de Sarney. "Ele perdeu uma chance de ouro", afirma o hoje pretendente a retornar ao Palácio dos Bandeirantes, que se defende de acusações como a de Lamounier e diz não ter sido um dos beneficiados diretos pelo Cruzado. "O candidato do plano em São Paulo era o Antonio Ermírio", afirma Quércia, referindo-se ao empresário lançado pelo PTB com o apoio de peemedebistas paulistas que, pouco tempo depois, fundariam o PSDB. "Eu era a favor do descongelamento", declara hoje o ex-governador. Luiz Carlos Bresser-Pereira, que assumiu o Ministério da Fazenda em abril de 1987, já depois da débâcle do Cruzado e da moratória da dívida externa, tem outra opinião sobre as razões para a ausência de acertos no plano. Para ele, a decisão não pode ser atribuída apenas ao presidente, "mas também ao ministro da Fazenda [Dílson Funaro], à maioria dos políticos e à sociedade, que estava imbuída de uma perspectiva populista equivocada". Segundo Bresser, que ficou apenas sete meses no ministério e lançou um novo pacote, alcunhado com seu próprio nome e igualmente fracassado, não havia espaço no Brasil daquela época para a noção de que o Estado tinha de controlar seus gastos. De acordo com ele, o país que saía da ditadura tinha uma veia fortemente populista, assim como o PMDB e os economistas próximos ao partido - "keneysianos equivocados", diz Bresser, que defendiam o aumento da demanda agregada pela geração de déficits públicos crônicos. "Quando falei de ajuste fiscal, houve uma revolta no PMDB", conta, justificando sua saída do governo exatamente pela impossibilidade de iniciar um processo de equilíbrio das contas públicas. Luiz Gonzaga Belluzzo, que era secretário de política econômica do Ministério da Fazenda e um dos expoentes do chamado "grupo de Campinas", economistas oriundos da Unicamp e ligados ao PMDB, obviamente discorda de Bresser e identifica nas próprias inconsistências do Cruzado as razões maiores para seu fracasso. Ele admite, porém, que a popularidade transformou alguns membros da equipe econômica em "heróis nacionais" e teve importância para o desdobramento dos fatos. "Foi fundamental para consolidar o Sarney, que era egresso do regime [militar]", diz Belluzzo. "Ele estava com 90% de ótimo e bom [nas pesquisas de opinião pública]. Isso afetou a posição dele em Carajás", conta o economista, que usa uma cena vista por ele na famosa reunião para ilustrar como o presidente se deixou encantar com o sucesso popular. "Logo que chegamos fizemos um passeio pela mina. Nisso, vimos um trabalhador, que colocou o corpo para fora da janela do ônibus usado de transporte por eles, e gritou: 'Sarney, você é Deus!'. Aí eu disse para o João Manoel [Cardoso de Mello, um dos economistas de Campinas]: 'Estamos perdidos'", rememora Belluzzo. E assim aconteceu. Sarney impediu que os ajustes fossem feitos para valer. Aceitou apenas o que ficou conhecido como "Cruzadinho", que tentava retirar algum poder de compra da classe média com impostos sobre combustíveis, viagens aéreas e automóveis. Belluzzo lembra, porém, que Sarney não decidiu apenas com base nos seus interesses políticos, pois havia divergências na própria equipe econômica. "Tinha gente que não queria fazer nada", diz ele. E os motivos desses eram muito parecidos com os de Sarney: aproveitar uma onda de popularidade e crescimento econômico.