Título: A frágil força do presidente acidental
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

Entrevista de Valor - José Sarney

Ninguém sabia o que era o Cruzado. Tanto que todo mundo achava, no princípio, que era recessivo. E deram um abono de 8%. E o plano não era recessivo, era consumista Quando eu assumi, o PT quis que os sindicatos aprisionassem o Estado, com greves e tudo. Eu tinha que ser fraco para ser menos fraco Presidente por acidente, politicamente frágil e obcecado com a idéia de ser deposto, e que por vezes precisava "ser fraco para não se tornar ainda mais fraco". Aos 75 anos, meio século de vida pública e 15 anos depois de deixar a Presidência da República, José Sarney tem uma convicção inabalável: se tivesse adotado um modelo clássico de combate à inflação, com forte restrição fiscal, teria sido derrubado. "Claramente eu ia ser deposto, e isso seria trágico para o Brasil, num momento em que nós estávamos numa transição democrática." São conhecidas as circunstâncias em que Sarney se tornou presidente da República e governou de março de 1985 a março de 1990. Após 21 anos de ditadura militar, um civil, Tancredo Neves, elegeu-se apesar da oposição do presidente João Baptista Figueiredo e da linha dura do regime. Na véspera da posse, Tancredo foi internado com uma crise de diverticulite, passou sete vezes pela mesa de cirurgia e morreu em 21 de abril de 1985. A longa agonia e a deificação de Tancredo só dificultaram a empreitada de Sarney, que se considerava um presidente sem legitimidade. "Não tinha nem partido. Havia saído do PFL para entrar no PMDB", relembra Sarney. "Fiquei no cargo, mas o poder político ficou na mão do Ulysses [Ulysses Guimarães, à época presidente do PMDB]." A partir de então, Sarney travou uma batalha diária, de "6h às 6h", para se legitimar. Manteve o ministério, articulou com os militares, acelerou a execução da agenda política de Tancredo, e foi um pouco além. Para tentar estabelecer uma cabeça-de-ponte e furar o bloqueio de Ulysses Guimarães, atendeu também a pauta do chamado grupo autêntico do PMDB, com a legalização dos partidos comunistas, abertura sindical e a criação do Ministério da Reforma Agrária. Tancredo julgava a questão dos comunistas um problema do Judiciário e, cauteloso, criara o Ministério de Assuntos Fundiários. "Reforma agrária era uma palavra maldita", diz Sarney. O enredo das reformas políticas e do desenrolar da Assembléia Nacional Constituinte, do ponto de vista de Sarney, é bastante conhecido. Menos explorada tem sido a relação de Sarney com a economia. Uma história profícua: o ex-presidente foi responsável por nada menos do que três planos de estabilização econômica (Cruzado, Bresser e Verão), duas reformas monetárias (Cruzado e Cruzado Novo), quatro ministros da Fazenda e uma moratória da dívida externa que por anos travou a convivência do país com o mundo financeiro internacional. Em duas entrevistas concedidas ao Valor em seu espaçoso gabinete no anexo 1 do Senado, Sarney destrincha os acertos, os erros e as dificuldades enfrentados nas administrações dos diversos planos econômicos, até a ingenuidade da decisão de decretar a moratória com pompa e circunstância. "Era a bandeira política da época", procura justificar o presidente. "Foi um ato de poeta", diz. Em mais de cinco horas de conversa, o ex-presidente falou sobre suas relações com Ulysses, contou a gênese de cada plano, as dúvidas e fortes atritos da equipe econômica - João Sayad, ministro do Planejamento, foi contra o Cruzado II e previu que não daria certo - e exime-se de qualquer responsabilidade pelo fracasso do Plano Cruzado. "Ninguém nunca me pediu para fazer correção que eu não tenha examinado para fazer", afirma. Na famosa reunião de Carajás, em maio de 1986 - convocada para discutir as correções de rumo do congelamento de preços, da exacerbação da demanda, os ágios, a necessária contrapartida fiscal que demandava o Cruzado -, segundo o ex-presidente, "não se discutiu nada". O encontro que ele esperava que fosse secretíssimo, na verdade, acabou sendo "um show", com toda a imprensa nacional presente. Hoje, senador pelo PMDB do Amapá, visto como um experiente articulador político por seus pares, Sarney diz que o fato é que nem os economistas que fizeram o Cruzado sabiam exatamente com o que estavam lidando. "Ninguém sabia o que era o Cruzado. Nenhum deles. Tanto que todo mundo achava, no princípio, que era recessivo. E deram um abono de 8%. E o plano não era recessivo, era consumista", argumenta. O ex-presidente José Sarney, 75 anos, no Senado, em Brasília: "Eu não deixei que a democracia morresse nas minhas mãos. Esse é o balanço do meu governo", afirma O Cruzado II, uma correção de rota anunciada seis dias após as eleições que deram ao PMDB 22 governadores e 273 deputados federais, "foi o maior erro que cometemos no governo, e por ele paguei muito caro". Antes dele, e logo após o encontro em Carajás, o governo editou o "Cruzadinho", uma tentativa tímida de medidas fiscais para conter a demanda, que explodia e levava o governo a operações estridentes e inúteis, como caçar boi no pasto para abastecer o mercado de carne. O plano heterodoxo, que completa este mês 20 anos, também fazia parte do processo de legitimação buscado por Sarney. "A economia era importante, como é em todo lugar, mas ela era apenas a base de sustentação de nosso projeto político", diz. "Esse era fundamental, porque a economia se podia consertar em qualquer tempo. O projeto político, se falhasse, seria um retrocesso que não tinha tamanho." E retoma o fantasma da deposição, que era compartilhado por Ulysses: "Não podíamos fazer uma transição democrática dentro da recessão. Eu seria deposto, o Brasil sofreria um retrocesso, os militares teriam voltado, porque só eles eram organizados". Mas nem tudo foi fracasso, ressalta: "Graças ao Cruzado nós fizemos a Constituinte. Graças a ele nós fizemos a transição democrática". Não se pode tirar de Sarney outros méritos. Foi no seu governo que começaram a primeira rodada de abertura comercial do país, com a redução das tarifas de importação, as discussões sobre privatização e as primeiras medidas institucionais para permitir o controle de fato das contas públicas. Ele acabou com a "conta de movimento" do Banco do Brasil junto ao Banco Central, pela qual o governo sacava o quanto quisesse para gastar no que pretendesse, independente do orçamento fiscal; e criou a Secretaria do Tesouro Nacional. Sarney lamenta que seu governo tenha passado para a história como sinônimo de hiperinflação, o que questiona, por entender que inflação com correção monetária não é a mesma coisa do que inflação sem a correção. Para cada número que se apresenta, ele saca o estudo de algum economista para mostrar que os números da sua administração não são assim tão feios. "Se calcularmos em dólar a inflação brasileira do meu período, sabe quanto foi? Uma média anual de 14%. O crescimento médio do PIB (Produto Interno Bruto) foi de 5% ao ano." E reitera: "Eu não entraria em recessão jamais. Esse era o meu limite". Em 1988, porém, esse limite foi ultrapassado e o PIB caiu 0,06%. O Cruzado, anunciado em 28 de fevereiro de 1986, começou a ser preparado pela equipe de João Sayad, ministro do Planejamento, economista pelo qual Sarney nutre enorme admiração. Lá estavam os economistas Persio Arida, André Lara Resende e Francisco Lopes, que haviam se debruçado sobre a questão da inflação inercial, da realimentação da inflação de amanhã pela de hoje, por meio da indexação. O plano não contou com qualquer apoio externo. As relações com o governo americano eram hostis e o Fundo Monetário Internacional (FMI) estava cansado dos acordos fracassados com o Brasil. No dia em que divulgou o Cruzado, a única comunicação feita ao FMI foi por meio do então presidente do Banco Central, Fernão Bracher, que enviou um telex com a cópia da nota à imprensa que explicava o programa para o representante do Brasil no FMI, Alexandre Kafka. O isolamento durou todo o governo Sarney. Dos quatro ministros da Fazenda de sua gestão, Sarney só pôde escolher um: Maílson Ferreira da Nóbrega. O primeiro, Francisco Dornelles, havia sido indicação de Tancredo, de quem era sobrinho. Dílson Funaro foi escolha de Ulysses Guimarães. Para suceder Funaro, Sarney escolheu Tasso Jereissati, governador do Ceará, cujo nome foi vetado por Ulysses, que impôs Luiz Carlos Bresser-Pereira. Com demandas de toda a sorte represadas durante 21 anos de ditadura, sem dúvida, Sarney foi presidente num período difícil. Com menos de dois meses no cargo, enfrentou uma greve no ABC paulista. Cruzaram os braços os metalúrgicos de Santo André, São Bernardo e São Caetano, além dos trabalhadores de Sorocaba, Itu, Campinas, Taubaté e São José dos Campos. Metroviários e professores do Rio também pararam, assim como os motoristas de ônibus de Salvador. Em abril, estavam parados 400 mil trabalhadores de 16 categorias, em nove Estados. Ao todo, foram 12.600 greves nos cinco anos de mandato de José Sarney. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), aliás, detonou um dos momentos mais críticos de seu governo. Em novembro de 1986, logo após a edição do Cruzado II e o descongelamento de preços, a entidade convocou uma passeata de protesto em Brasília. Cerca de seis mil pessoas iniciaram a manifestação, que logo reunia mais de 20 mil pessoas e terminou num formidável quebra-quebra. Acusado de leniência, Sarney se defende: "O Getúlio, que todo mundo diz que fez uma revolução trabalhista, quis aprisionar os sindicatos pelo Estado", explica. "Quando eu assumi, o PT quis que os sindicatos aprisionassem o Estado, com greves e tudo. Eu tinha que ser fraco para ser menos fraco." No plano externo, Sarney teve a sorte de não estar só num continente que se redemocratizava. Na Argentina, governava um civil, Raul Alfonsín, que em janeiro de 1986 - um mês antes do Cruzado - navegava na popularidade do Plano Austral, baixado em junho de 1985. No Uruguai, pouco antes de Sarney assumir, tomou posse outro civil, Julio Maria Sanguinetti. Começaram, ali, os primeiros passos para a criação do Mercosul. Depois do formidável quebra-quebra de Brasília, antes de deixar o governo, Sarney ainda ouviria outra vez o que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chama de "a voz rouca das ruas" - em junho de 1987, o ônibus no qual deixava uma solenidade foi apedrejado nas ruas do Rio. Arriscado principalmente para quem julgava que poderia ser colocado porta a fora do Planalto ao menor descuido. "Aquilo lá é um lugar perigoso", não se cansa de repetir José Sarney. Embora lamente não ter eleito o sucessor, Sarney dá por cumprida a missão de seu governo: "Eu não deixei que a democracia morresse nas minhas mãos. Esse é que é o balanço do meu governo".