Título: "Fiquei no cargo, mas o poder ficou na mão do Ulysses"
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

Leia, a seguir, os principais trechos de duas entrevistas que o ex-presidente José Sarney concedeu ao Valor, em seu gabinete no Senado.

Valor: O senhor assumiu o governo do Maranhão, em 1965, tirando uma oligarquia que estava lá havia 20 anos. O governador era Newton Belo, mas quem mandava era Vitorino Freire. Belo renunciou quatro dias antes de sua posse para não lhe passar o governo...

José Sarney: Isso é um destino meu.

Valor: Em 1985, o ex-presidente João Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto para não lhe passar a faixa. O senhor considera-se um predestinado?

Sarney: Não tenho essa visão de predestinação. Apenas cumpri uma carreira política na qual acho que pesaram algumas qualidades, alguns defeitos e algumas oportunidades. A política é o destino, já dizia Napoleão.

Valor: O que possibilitou o recadastramento eleitoral, importante para sua eleição em 1965?

Sarney: O Maranhão era célebre pelas atas falsas dos eleitores fantasmas, como na República Velha. A primeira coisa que conseguimos foi que se fizesse o recadastramento. Dele resultou que quase metade dos eleitores não existia. Isso abriu condições para que disputássemos o governo. Mas isso só foi possível por causa da Revolução [o golpe militar de março de 1964].

Valor: O senhor já tinha relação naquela época com o general Humberto Castelo Branco (presidente de 1964 a 1967)?

Sarney: Tinha. Eu era secretário do governo do Maranhão, do Eugênio Barros, em 1951, quando Castelo Branco era da décima região militar. E ele ia ao Maranhão. Gostava de literatura e fez uma conferência na Academia Maranhense de Letras sobre a batalha de Guararapes. Nos dávamos bem, depois o perdi de vista.

Valor: Em 31 de março de 1964, dia do golpe militar, onde o senhor estava?

Sarney: Em Brasília. Não sabíamos o que estava acontecendo. As notícias eram desencontradas. Não tinha nenhuma ligação nem estava envolvido com a Revolução. Mas era amigo do Magalhães Pinto [governador de Minas Gerais na ocasião] e quando soube das notícias liguei para ele e soube que as tropas já tinham sido deslocadas. Mas, em Brasília, a classe política estava alijada. O centro das decisões era fora daqui.

Valor: Que avaliação faz dos presidentes militares?

Sarney: Foi uma sorte para o Brasil o Castelo Branco assumir o governo. Senão, teríamos ido para uma quartelada. Castelo era um homem de formação udenista. Achava que eles iam ocupar o governo e depois entregariam o país às eleições diretas. Deve-se a ele o planejamento constitucional [a Constituição de 1967]. Ele conteve, em grande parte, a chamada linha dura. Só não foi deposto porque, de certa forma, cedeu à candidatura do Costa Silva [marechal Arthur da Costa e Silva, presidente de 1967 a 1969]. Costa e Silva representava um grupo militar que tinha a idéia de que podia, por meio da força, resolver todos os problemas. Eram muito limitados. Foi o que aconteceu com o AI-5 [ato institucional que acabou com os direitos e garantias individuais]. A partir dali a Revolução degringolou.

Valor: Qual foi sua reação ao AI-5?

Foto: Luma Marques/Folha Imagem Ulysses Guimarães ergue a Constituição de 1988, hoje muito criticada pelo ex-presidente José Sarney, que revela suas divergências com o político paulista e não ter sido convidado a participar da Constituinte Sarney: Tive vontade de largar o governo do Maranhão. Mas fui o único governador que passou um telegrama ao Costa e Silva dizendo que esperava que aquilo fosse provisório. Achava que ia ser cassado. Preparei-me para isso. Fui à televisão. Li meu comunicado ao povo maranhense. Alguns dias depois, o Costa e Silva reuniu todos os governadores em Petrópolis e disse: "Se eu não cassei os governadores foi para não desmontar a Federação". Ele me chamava de castelista.

Valor: Vem desse período a acusação de que o senhor era comunista?

Sarney: Estava fazendo um governo referencial e vieram as acusações porque levei todos os que tinham sido afastados, eram meus companheiros de formulação, os intelectuais. No tempo em que fui governador não cassei, não aposentei, não pus em disponibilidade uma pessoa. O Maranhão talvez seja o único Estado em que isso tenha ocorrido. Os governadores naquele período passaram a ter um poder danado e todo mundo fez limpeza de casa.

Valor: O ex-deputado Renato Archer dizia que o senhor não cassou ninguém, mas teria pedido ao Castelo que cassasse Newton Belo.

Sarney: O próprio senador Vitorino Freire no livro "Na Toca da Raposa" diz que foi ele que, tendo brigado com o Newton Belo, pediu sua cassação ao movimento revolucionário. Eu nunca me dirigi ao Newton Belo.

Valor: Voltando aos presidentes militares. E Emílio Garrastazu Médici (presidente de 1969 a 1974)?

Sarney: No tempo do Médici também foi a mesma coisa. Ele foi inaugurar a estrada São Luís-Teresina, feita por mim, mas não inaugurou no Maranhão. Inaugurou em Teresina (PI) para não ir ao Maranhão por causa das divergências que achava que tinha comigo.

Valor: A chegada do presidente Ernesto Geisel (1974-1979) significou a retomada do projeto castelista?

Sarney: Ele retomou o projeto do Castelo. Nós tínhamos um grupo, formado entre outros pelo Krieger [Daniel Krieger, senador pela Arena Rio Grande do Sul], eu, o Petrônio [Petrônio Portela, senador pela Arena do Piauí] - um grupo que estava em busca de uma solução. Golbery [o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel], que estava muito dentro disso, era quem respaldava essa linha. O Geisel planejou a abertura lenta, gradual e segura.

Valor: Mas houve a tentativa de golpe da linha dura.

Sarney: Teve a tentativa do Silvio Frota, ministro do Exército. Mantinha-se o mesmo espírito desde o tempo do Castelo, a linha dura era contra.

Valor: A classe política efetivamente participava?

Sarney: Dividida também.

Valor: E o MDB?

Sarney: Sim. Havia um sacro colégio. Nós nos entendíamos secretamente para evitar que as coisas chegassem a um impasse. Participavam Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Daniel Krieger, Thales Ramalho. Um grupo que sempre se reunia nessas épocas de crise. O Roberto Freire [do Partido Comunista Brasileiro, então na ilegalidade, mas abrigado no MDB] algumas vezes participou. Nós não podíamos dar carne às feras. Isso foi um processo de engenharia política que foi levado à frente com o respaldo do Geisel. Segurávamos para evitar que o processo regredisse. Geisel tinha uma noção muito objetiva e clara de que havia resistências na área militar. Muitas. E que ele devia enfrentá-las. Se ele não fizesse isso, teríamos uma degringolada.

Valor: O Pacote de Abril foi uma resposta?

Sarney: Foi uma resposta a isso. A Constituinte do Riacho Fundo [residência de Geisel, nos arredores de Brasília].

Valor: O senhor foi o relator da emenda constitucional que extinguiu o AI-5. Foi um processo tranqüilo?

Sarney: Fiz duas modificações na emenda que Geisel mandou . Ele usou a "expressão direitos do homem", e eu disse que a expressão era "direitos humanos". Outra foi o Jânio Quadros, que me pediu para tirar a restrição de que os presidentes que renunciassem não receberiam pensão. Quando a emenda foi feita ele deu uma entrevista e disse: "Não aceito benesses da ditadura" [risos]. Mas deve ter recebido [a pensão].

Valor: O general João Figueiredo (1979-1985) foi indicado presidente com a perspectiva de concluir a abertura de Geisel. Mas houve problemas...

Sarney: O Figueiredo foi eleito com a presunção de todos nós de que ele ia continuar a abertura do Geisel e tinha como aval disso o fato de o Golbery se encontrar na Casa Civil. A partir da bomba do Riocentro [atentado frustrado a um show em comemoração ao Dia do Trabalho, em 1981, no pavilhão de exposição do Riocentro, no Rio], o Golbery saiu e a linha dura tomou conta. Mas encontrou pela frente um homem chamado Leitão de Abreu [substituto de Golbery na Casa Civil], que estava engajado, junto com o Ludwig [general Rubens Ludwig, chefe da Casa Militar], no processo da abertura. Dentro desse projeto, para dar suporte ao processo de abertura, é que eu fui para o PDS. O Geisel colocou o Petrônio no Ministério da Justiça e me colocou à frente do PDS.

Valor: Qual foi o peso da bomba do Riocentro no processo?

Sarney: O peso é que o Figueiredo não teve coragem de enfrentar a área militar e submeteu-se à linha dura. Esse processo se desencadeou e só não foi mais longe graças ao Leitão de Abreu. O Figueiredo começou a sonhar com a prorrogação do mandato. O Brizola [Leonel Brizola, presidente do PDT] e o Partido Comunista apoiaram. Isso desarticulou o processo e ficamos dentro do PDS um pouco soltos no ar. O nosso ponto de apoio foi o Leitão de Abreu. Havia uma nítida divisão entre o que o Leitão e a área militar pensavam. O Leitão teve importância grande, inclusive na eleição do Tancredo.

Valor: Quem era a âncora do Leitão de Abreu?

Sarney: O general Ludwig pensava afinado com ele. E afinado conosco também.

Valor: Não era pouco?

Sarney: Era, mas ele tinha também um grande respaldo na área política. Então, nós saímos do PDS. Eu, Aureliano Chaves [vice de Figueiredo], Marco Maciel [senador por Pernambuco], Jorge Bornhausen [senador por Santa Catarina], que era meu vice no PDS, Nelson Marchesan [deputado gaúcho e ex-presidente da Câmara]. Resolvemos que nós não aceitávamos o Maluf [ex-governador paulista], até porque achávamos que era um retrocesso e ao mesmo tempo uma coisa que iria provocar um confronto no Brasil inteiro.

Valor: Como foi a articulação para assegurar a vitória no Colégio Eleitoral?

Sarney: Precisávamos, para ter essa dissidência no PDS e assegurar a vitória do Tancredo, de respaldo militar. Esse respaldo militar nós começamos a construir com o Leônidas [general Leônidas Pires Gonçalves, foi ministro do Exército no governo Sarney], o Aureliano com a Marinha. Nós também tratamos com o brigadeiro Murilo Santos em relação à Aeronáutica. Sem suporte militar nós não teríamos a transição que tivemos. A partir daí foi possível ter a dissidência e haver a transição tranqüila.

Valor: O senhor já chegou com a decisão da renúncia tomada à reunião do Diretório Nacional do PDS?

Sarney: Sim. Como o candidato era o Maluf, eu não ia ficar com ele. A solução foi combinada com o Leitão para tentarmos derrubar o Maluf e ver se fazíamos o Aureliano candidato às prévias. Quando chegaram as prévias, eles foram para o diretório desfazê-la. A partir daquele momento, eu não tinha mais espaço nenhum no PDS.

Valor: Por que o senhor foi armado à reunião?

Sarney: Eles tinham dito na véspera que iam me tirar a tapa de lá. É difícil a gente ser tirado a tapa, não é uma coisa agradável.

Valor: Na Presidência, o senhor dizia que não era de dar murro na mesa, porque ou quebrava a mesa ou quebrava a mão.

Sarney: Mas também nunca aceitei que o sujeito viesse me dizer que ia me botar para fora a tapa.

Valor: Durante a doença do Tancredo, houve quem efetivamente tenha sugerido que o Doutor Ulysses é que deveria ser empossado?

Sarney: Não participei, porque me preparei para ser um vice-presidente fraco de um presidente forte. Quando houve a doença do Tancredo eu fiquei mais tocado pelo lado humano e não pelo lado político. Tanto que o Ulysses veio falar comigo:

Dílson estava enganado com a perspectiva que foi dada a ele de empréstimos que entrariam (sobre a moratória)

- Olha Sarney, vamos ter que tomar uma decisão.

Eu disse:

- Ulysses, não quero assumir.

Ele respondeu:

- Nosso dever agora é político.

E eu:

- Mas não quero participar. Eu sou parte disso e vou embora para casa.

E fui. O que aconteceu na noite só fiquei sabendo de madrugada quando me ligou o Frageli [José Frageli, presidente do Senado] dizendo que eu tinha que tomar posse. Em seguida houve um telefonema do Leônidas. Eu disse:

- Eu não quero.

Aí ele respondeu:

- Boa noite, presidente.

Valor: Qual balanço o senhor faria de 21 anos de regime militar?

Sarney: O mais negativo foi a destruição da classe política. A formação de quadros políticos desapareceu totalmente. Os partidos foram destruídos. Essa foi a grande falha. E que resultou no impasse que temos até hoje. Não temos quadros políticos, a estrutura política também desapareceu. Quer dizer, não há um grupo capaz, como aquele nosso, de formular um projeto político de modernização.

Valor: O Brasil faliu em 1982, depois entrou em processo de hiperinflação e...

Sarney: Falam que o governo Sarney foi da hiperinflação! Inflação com correção monetária jamais pode ser comparada com inflação sem correção monetária. Tinha duas opções. Uma era ir para um processo clássico de combate da inflação, de restrições de despesa, tal como esse que está sendo feito. Eu não tinha condições políticas para isso. Eu ia ser deposto. Claramente ia ser deposto. E isso era trágico para o Brasil, num momento em que nós estávamos numa transição democrática.

Valor: O senhor está dizendo que seria deposto caso quisesse fazer um ajuste fiscal?

Sarney: Se eu fizesse ajuste fiscal duro, se marchasse para o plano do FMI.

Valor: Que sinais teve de que isso poderia acontecer?

Sarney: Minha sensibilidade política. O Castelo foi fazer isso e quase caiu. Não caiu porque passou para o outro lado. Eu não tinha condições de sustentação política para isso. Então o que eu fiz? Saí com um plano heterodoxo, o Plano Cruzado. No momento em que o Cruzado fracassou, não tive dúvidas: vou fazer correção mensal. Agora, se chegarmos e verificarmos o que isso representou para a economia, vamos verificar que, se calcularmos em dólar a inflação brasileira do meu período, sabe quanto foi? Uma média anual de 14% [aponta para uma tabela feita pelo economista Michal Gartenkraut, em 2000]. Não entraria numa recessão jamais. Esse era o meu limite. Qual foi o período que cresceu igual ao meu? Nenhum. O crescimento médio do PIB foi de 5% ao ano. Eu não podia deixar o projeto da transição política. Para isso, precisava de uma sobrevivência na área econômica. Não podia fazer a Constituinte se eu não tivesse também uma base [na economia]. Por que eu pude fazer a Constituinte? Porque o desemprego era 2,69%, porque o Brasil crescia. O que não tinha? Não tinha base política.

Valor: O Plano Cruzado foi também parte do processo de legitimação?

Sarney: Quando já estava segurando um pouco as rédeas do governo, comecei a me preocupar com a parte da economia como parte do processo de legitimação. Como achava que não podíamos fazer o método clássico da recessão, teria que partir para um plano heterodoxo. Numa conversa, o Mathias Machline [empresário já morto] me disse que Israel tinha feito um plano econômico. Chamei o Sayad e pedi que ele mandasse uma pessoa a Israel para examinar o que eles tinham feito. Ele mandou o Persio Arida. O Persio foi escondido. O Persio voltou e explicou o que era o plano de Israel. Então o Sayad começou a trabalhar o arcabouço do plano. O plano não começou no Ministério da Fazenda, começou com o Sayad, nasceu no Ministério do Planejamento. Isso também foi uma coisa que nunca superamos porque as duas equipes começaram a ter atritos.

Valor: Já era o Dílson Funaro na Fazenda?

Sarney: Já. Então as duas equipes começaram a atritar. Foi difícil a negociação até o fim. Mas quem comandou o plano foi o João Sayad.

Valor: O Cruzado produziu euforia na demanda. Faltaram produtos nos supermercados, surgiu o ágio, e os economistas do governo falavam na necessidade de ajuste fiscal para conter a demanda. Por que a reunião de Carajás (em maio de 1986), destinada a corrigir os rumos do Cruzado, foi um fracasso?

Sarney: A idéia de Carajás foi minha. Escolhi Carajás para ser muito secreto. Passaríamos um fim de semana discutindo, porque já estava sabendo das dificuldades. A minha idéia era realmente de a gente fazer uma avaliação do que era, como é que estava e quais eram as dificuldades que nós tínhamos. Quando cheguei a Carajás tive a grande surpresa de ver que era um show internacional, imprensa, todo mundo. Para mim foi uma grande surpresa. Vi imediatamente que não podíamos fazer aquilo que estava pensando. E se transformou realmente numa floração de posições de cada um. Não havia nenhum clima de se fazer nenhuma análise em Carajás. É uma coisa errada dizer que não quis fazer nenhuma modificação, porque nunca ninguém me propôs nenhuma modificação que eu não tivesse examinado para fazer.

Valor: Mas em julho saiu o "Cruzadinho" (pacote fiscal considerado tímido).

Sarney: Veio o "Cruzadinho". Perguntei: "Vocês estão de acordo, está tudo certo? Então vamos fazer".

Valor: Mas o Sayad era contra.

Sarney: Não. O Sayad não chegou a ficar contra o "Cruzadinho". Mas já estava desencantado.

Valor: O senhor fala que não atacou a questão do déficit com medidas fortes porque não tinha condições políticas para isso.

Sarney: Mas nós atacamos.

Valor: Mas o Sayad diz num texto sobre a reunião de Carajás que o nó górdio da questão, ficou claro ali, era o déficit. Na reunião, o déficit público acabou sendo chamado de "caroço, o núcleo central e duro dos problemas do Cruzado". No texto, ele relata: "O presidente afirmou em todos os momentos que quem havia feito o Cruzado tinha energia e coragem para quebrar esse caroço e resolver o problema". E aí vem a discussão do "Cruzadinho".

Sarney: O Sayad diz também que ninguém sabia o que era o Cruzado. Nem eles. Como era uma coisa nova, eles não tinham nenhuma visão de o que podia ocorrer. Eles mesmos, os economistas, diziam isso. Ninguém nunca me pediu para fazer correção. Ninguém sabia o que era o Cruzado e como consertá-lo. Tanto que todo mundo achava, no princípio, que era recessivo e deram um abono de 8%. E o plano não era recessivo, era consumista.

Valor: Gerou uma superdemanda.

Sarney: E, no entanto, todos eles achavam que o plano era recessivo. A verdade é que ninguém sabia. Era uma tentativa inovadora. E deu certo. Graças a ele fizemos a Constituinte, graças a ele fizemos a transição democrática e, mais ainda, ele também foi um plano de natureza política, porque a partir do Cruzado houve uma modificação do comportamento da cidadania brasileira. Todo mundo achou: "Eu sou o fiscal do presidente". O consumidor passou a ter outra imagem do Brasil. Ali nasceu verdadeiramente o sentimento de cidadania.

Valor: Mas quando o plano começa a ter problemas, na reunião de Carajás...

Sarney: A minha opção qual era? Recessão. Tínhamos de adotar um modelo clássico, restrição de despesa, e iríamos entrar num período de recessão dura. Mas eu não tinha nenhuma condição política de fazer uma recessão. Se eu fizesse, teria caído. O Castelo Branco fez, mas teve que engolir o Costa e Silva e por duas vezes quase que vai para fora. Qual foi minha opção? Foi administrar a inflação por um curto período, eu sabia disso, mas pelo menos por um período que nos assegurasse a transição democrática e a Constituinte pudesse terminar o seu trabalho. Era preciso fazer a conclusão da transição política, e, ao mesmo tempo, como nós tínhamos a correção monetária, eu criei aquele colchão.

Valor: O gatilho salarial?

Sarney: O gatilho salarial, que em seguida passou para correção dos salários. Esse foi o respaldo, a base para que eu pudesse, politicamente, concluir o maior projeto de todos, que era o projeto político. A economia era importante, mas ela era apenas a base de sustentação a nosso projeto político. Este era fundamental, porque a economia se podia consertar em qualquer tempo; o projeto político, se falhasse, seria um retrocesso que não tinha tamanho. Nós não podíamos fazer a transição democrática dentro da recessão. Eu seria deposto, o Brasil sofreria um retrocesso, os militares teriam voltado, porque só eles eram organizados.

Valor: O PMDB não o apoiava para fazer coisas mais duras?

Sarney: Assumi a Presidência porque constitucionalmente era o vice-presidente. Mas assumi como? Era um homem que não tinha poder político nenhum, não tinha participado das negociações para a formação do governo, não tinha participado de nenhum programa de governo, não tinha participado da campanha, um homem de um Estado pequeno, sem nenhum poder político, que não tinha nenhuma penetração maior, vamos dizer, na intelligentsia nacional e não tinha nenhum poder dentro do Congresso. Não tinha nem partido. Eu havia saído do PFL para entrar no PMDB. Fiquei no cargo, mas o poder político ficou na mão do Ulysses. A herança política do Tancredo era do Ulysses, era do PMDB. Então, qual era a minha primeira preocupação? Era não ter atrito com o Ulysses, porque sabia que o poder político estava na mão dele. Se não tivesse uma boa relação com ele, teríamos fracassado no primeiro dia. Eles tinham me botado para fora. Eu não tinha força nenhuma de sustentação para ser presidente. Tive que construir essa legitimidade.

Valor: A estabilização começou a lhe dar essa legitimidade?

Sarney: O governo era do PMDB, então o PMDB era que tinha que formar o governo. Como o Tancredo era do PMDB, eu moralmente achava que não era correto fazer um governo pessoal meu ou do PFL. Em seguida, tinha de procurar legitimidade. O PMDB não era monolítico. Tinha o grupo autêntico, com as bandeiras mais avançadas. Não podia cooptar o grupo autêntico, mas podia cumprir a agenda que eles tinham. Foi o que fiz. Eleições diretas logo. Abrir a área sindical, legitimando e legalizando as confederações, legalizar os partidos políticos, que estavam na clandestinidade, acabar com os municípios de segurança nacional, criar o Ministério da Reforma Agrária. O ministério criado pelo Tancredo era o de Assuntos Fundiários. Eu disse vamos botar o nome, que era uma palavra maldita, reforma agrária. Como fiz em relação à legalização dos partidos. Eu não fui discutir com os militares, porque seria uma discussão interminável . O que eu fiz? Convidei o João Amazonas [presidente do PC do B] e o Giocondo Dias [presidente do PCB] para jantar no Palácio e bati uma fotografia com eles. No dia seguinte, qual era a situação? Estava legalizado.

Valor: Por que o Cruzado II foi feito seis dias após as eleições? Ficou essa acusação a seu governo, de esticar o Cruzado para ganhar a eleição.

Sarney: O Cruzado II foi o maior erro que nós cometemos no governo, e por ele eu paguei muito caro. Toda a teoria do Cruzado II era errada. Eles [os economistas] tinham a teoria de que, se aumentando impostos sobre cinco produtos de consumo de elite, eles não contaminariam a economia e a inflação.

Valor: Era a tentativa de fazer um ajuste fiscal via aumento de receita?

Sarney: Era isso. Sayad, não. Sayad achava que se devia fazer o ajuste através do aumento do Imposto de Renda. Aí, sim, ele estava contra e não no "Cruzadinho".

Valor: Como foi esse debate?

Sarney: Reunimo-nos no Alvorada. Dílson apresentou o plano, com o Belluzzo [Luiz Gonzaga Belluzzo, chefe da assessoria econômica] e com o João Manuel [João Manuel Cardoso de Mello, assessor especial de Funaro]. O Sayad se manifestou contra. Diante disso, e eu tinha muita confiança no Sayad, eu disse que não podia decidir. Porque se havia divergência eu não tinha como decidir porque não teria base. Disse que eles deviam se entender sobre qual era a solução. Marcamos uma reunião para dois dias depois. Nessa reunião o Sayad disse "eu concordo com a fórmula do Dílson". Então está decidido.

Valor: O que o fez mudar de opinião?

Sarney: O Sayad me disse que foi procurado pelo Ulysses e por um grupo do PMDB que disse a ele que ele estava criando problema para o Funaro, que ele não podia criar problema para o Funaro, nem para o PMDB, e fez um apelo a ele. Se houve alguma coisa, foi nesse ponto. Ele me disse, então, que havia concordado, mas que o Cruzado II estava errado e não ia dar certo. "Sayad, como é você me diz isso agora, quando o plano já está na rua?", falei. Eles queriam que eu fosse para a televisão explicar. Eu disse: "Não vou. Porque, se você está contra e diz que não vai dar certo, eu vou explicar o quê? Eu não tenho convicção, eu aprovei baseado em vocês".

O Cruzado II foi o maior erro que nós cometemos no governo, e por ele eu paguei muito caro. Toda a teoria do Cruzado II era errada

Valor: É bom lembrar o ambiente da época. Havia uma rebelião, a Fiesp pregava a desobediência civil ....

Sarney: Eu briguei com o Mário Amato [presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], que eu chamei de Bakunin [Mikhail Alexandrovich Bakunin, 1814-1879, líder anarquista]. Havia uma rebelião das classes mais altas e eu paguei caro. Fui o único presidente da República que nunca foi homenageado pela Fiesp. Nunca tive um almoço na Fiesp. Por causa do congelamento [risos].

Valor: Mas o Cruzado II, logo após as eleições, soou como uma traição. O Sr. temia as eleições?

Sarney: Para mim esse assunto nunca foi colocado.

Valor: Como assim?

Sarney: O assunto eleitoral nunca foi colocado. Até porque nós ganharíamos a eleição, não tinha por que não ganhar a eleição. Se nós tivéssemos feito as mudanças que tinham que ser feitas, se a reunião de Carajás tivesse sido como eu queria, se não tivesse dado errado, nós teríamos tido condições de fazer. Ou então teríamos feito um plano diferente, que era o que o Sayad queria, e não aquele que era um plano que batia na cara do povo, diretamente.

Valor: Tem o Cruzado, o "Cruzadinho", o Cruzado II e em 1987 o Brasil quebra. Quando o país quebrou em 1982 foi um corre aqui, pega empréstimo-ponte ali e não se declarou moratória formal. Em 1987, chegou-se numa situação de declarar moratória formal. Como o senhor foi informado de que o país tinha quebrado?

Sarney: Eu não tinha informações sobre o problema das reservas cambiais. De certa forma, o Dílson estava meio enganado com as perspectivas que foram dadas a ele de empréstimos que iriam entrar...

Valor: Ele tentou um acordo com o Fundo?

Sarney: Não. Quem me contou que as reservas estavam lá embaixo foi o Rubens Ricupero [embaixador, assessor especial de Sarney no Planalto]. Não foi nem o ministro da Fazenda. Chamei o Dílson lá no Alvorada, o Belluzzo, o João Manuel. Eles me comunicaram qual era a situação. O Belluzzo me perguntou: "O senhor tem a coragem de fazer a moratória?" Eu disse: "É necessário?". Eles disseram que era, que era uma moratória técnica. O erro foi anunciar a moratória numa solenidade. Achávamos, naquele tempo, que a grande bandeira política era fazer a moratória. E que isso de certo modo nos daria um respaldo político. Resultado: ninguém ficou conosco. Nem o PT, que era a favor. Ficaram todos contra a moratória. Fiquei eu com a moratória na mão como se fosse coisa minha.

Valor: O senhor cobrou do Funaro por não ter lhe informado?

Sarney: Foi realmente um problema técnico, não foi uma decisão política. Eu havia conversado também com alguns presidentes da América Latina e tínhamos combinado de fazer uma ação conjunta para forçarmos uma negociação da dívida. Isso aí foi um pouco de poeta também, eu achei que teria a solidariedade interna e que também teria a solidariedade externa dos países que tinham o mesmo problema. O resultado é que na hora ninguém se manifestou, ficamos sós. Os Estados Unidos resolveram negociar com os outros países e isolar o Brasil. E nós ficamos isolados. O erro foi a maneira como se formulou a moratória. Que nós tínhamos que suspender os pagamentos, tínhamos.

Valor: O senhor disse que ficou sabendo pelo Ricupero que haviam apenas US$ 2,8 bilhões de reserva. Os quase US$ 7 bilhões dos dados oficiais eram maquiados?

Sarney: Aí dentro estavam coisas que não eram reservas. Na verdade nós tínhamos só US$ 2,8 bilhões de reservas, suficientes para pagar apenas três meses de importação.

Valor: Por que o senhor não pegou o telefone e pediu ajuda ao governo americano, aos bancos credores, como fez o presidente Figueiredo em 1983?

Sarney: Os americanos nesse momento não queriam nada. Pelo contrário, eles começaram a enganar o Funaro. Disseram: "Olha, nós vamos depositar US$ 1,5 bilhão para vocês e não sei o quê". O Funaro começou a acreditar em fantasmas. Ele sempre me dizia que o Japão ia nos dar US$ 2 bilhões e tanto, fulano vai ajudar. Nada disso era verdadeiro. Mas ele acreditava. Ele me disse que tinha uma pessoa do Departamento do Tesouro americano, que vinha aqui falar com ele, que aprovou o plano, o Cruzado II, e não sei o quê!

Valor: O senhor se lembra quem era esse funcionário?

Sarney: Não. Era um sombra. O Funaro dizia que era amigo dele. Então esse homem é que fazia a ligação com o Funaro. Hoje eu tenho a absoluta certeza de que esse homem desinformava o Funaro e botava coisas na cabeça dele.

Valor: Havia uma posição hostil dos Estados Unidos em relação ao Brasil?

Sarney: Havia. Sanções econômicas. Aquela que nós recebemos num 7 de setembro. Quando eu abri o telegrama pensei que fosse de congratulações. Era uma sanção que eles nos impuseram, a taxação do aço, suco de laranja. Eu disse: "Eles estão tão desinformados que não sabem nem qual é a data nacional".

Valor: Qual era o problema com o governo americano?

Sarney: Se o nosso projeto desse certo, nós mudávamos todo o sistema deles, não é? Se o Brasil resolvesse sem ir ao FMI, capitaneando a solução da dívida externa de uma forma diferente e com um plano heterodoxo, acabaria com o sistema que eles adotaram.

Valor: Com o plano Brady (que levou o nome de Nicholas Brady, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos)?

Sarney: Não, o plano Baker [James Baker, secretário do Tesouro americano que antecedeu Brady]. O plano Brady entrou depois, sugerindo desconto na renegociação da dívida. O Bresser tinha ido aos EUA propor ao Baker que houvesse desconto na renegociação da dívida. Depois o Brady vem e faz isso. O nosso botaram fora. Mais tarde um amigo me contou que esteve com o Paul Volker [presidente do Federal Reserve na época] e perguntou "por que o senhor apertou tanto o Brasil naquela época?" Volker respondeu: "O Brasil queria nos apertar".

Valor: Por quê?

Sarney: Porque nós reatamos relações com Cuba. Porque nós entramos naquilo que eles não entendiam, que foi a legalização dos partidos comunistas. Depois disso, colocamos a questão da pacificação da Nicarágua. E o Reagan queria justamente intervir na Nicarágua. Nós passamos a ser também uma pedra no sapato deles, com a nossa política externa. Um dia conversei com o Alfonsín [Raul Alfonsín, presidente da Argentina quando Sarney era presidente] sobre isso. Nós tínhamos que fazer isso porque já se criavam grupos internos que desestabilizariam nossos países, que eram aqueles grupos de apoio à Nicarágua. Nós tínhamos que manter isso aqui estabilizado. Daí vem o nosso programa, junto com o Alfonsín, da redemocratização da América do Sul.

Valor: Funaro conta num livro que quando estava em Washington, em audiência com o então secretário do Tesouro americano, James Baker, após a moratória, ficou sabendo por ele que havia um outro grupo, indicado pelo senhor, para renegociar a dívida externa. Aí ele começou a pensar em sair do governo.

Sarney: Nós pegamos o embaixador Saraiva Guerreiro, que tinha sido ministro das Relações Exteriores [governo Figueiredo] e o encarregamos de ser um representante extraordinário do governo para tratar da questão da dívida externa, não só na sua parte econômica, mas também diplomática. Mas isso não chegou a se concretizar. Ele começou a trabalhar junto com o pessoal da dívida. Depois, veio o embaixador Sérgio Amaral, já em outro período, mas sempre com um diplomata tomando conta disso.

Valor: Funaro foi uma escolha sua?

Sarney: Foi do PMDB.

Valor: Do Ulysses, do Severo Gomes?

Sarney: O Severo me influenciou muito na nomeação do Dílson. Eu conhecia o Dílson também porque tinha sido secretário do Abreu Sodré, quando o Sodré era governador. Não tinha intimidade, mas o conhecia. Era uma pessoa que tinha carisma, muito boa, meio iluminado. Um visionário. O Dílson era aplaudido tanto quanto eu, à época. Ele seria o candidato à Presidência da República se o Cruzado tivesse dado certo.

Valor: Sayad foi uma escolha do senhor?

Sarney: Do Tancredo.

Valor: Mas o senhor gostava muito dele?

Sarney: Eu conheci o Sayad no governo e fiquei um admirador seu. Lamentei muito quando ele saiu, mas foi por causa da briga dele com a equipe do Dílson.

Valor: O senhor acha que o Cruzado, com todos os seus percalços, erros e acertos criou as condições para que oito anos depois o governo lançasse o Real?

Sarney: Sem o Cruzado não existiria o Real. Aliás, o Sayad já havia me falado sobre o modelo de convivência de duas moedas, depois do Cruzado, mas eu não tinha mais condições políticas de fazer. Já estava tão desgastado com os planos...

Valor: Pouco depois da moratória, Funaro saiu do governo, Bresser assumiu o Ministério da Fazenda e editou o Plano Bresser...

Sarney: Bresser fez o plano com o Nakano [Yoshiaki Nakano]. Bresser foi indicado pelo PMDB e quem fez o anúncio foi o Doutor Ulysses. Eu tinha convidado o Tasso Jereissati para ser o ministro da Fazenda. Ele era muito entrosado com a equipe econômica, era nordestino, o que, na minha cabeça, era algo importante, era empresário. Mas Ulysses teve uma reação grande, por causa de São Paulo, fez uma pressão grande, o Tasso não aceitou e eu disse a Ulysses: "Então, agora, você escolha o ministro da Fazenda". E ele indicou o Bresser. O plano Bresser foi uma coisa apressada e quando ele, em entrevista na TV, explicou como sendo um problema de "João e Maria", os próprios meios econômicos ficaram... Sempre tive a impressão do Bresser como uma pessoa competente e bem intencionada. Ele tinha muita cerimônia comigo. Não sei se porque ele não acreditava no presidente ou se por que não tinha.... Ele nunca teve qualquer intimidade.

Valor: Conta-se que o senhor chamou Bresser para conversar antes de nomeá-lo ministro e que, nessa conversa, depois de falar sobre o que poderia ser feito, Bresser teria dito: "Presidente, só tem um problema. Todas as quintas feiras eu tenho que estar em São Paulo". O senhor perguntou "Por quê?", e ele teria respondido: "Porque faço análise". Houve essa conversa?

Sarney: Minha mãe! Por que a senhora me abandonou? (risos).

Valor: Bresser foi a Washington, introduziu a discussão da renegociação da dívida externa com desconto, mas não foi bem-sucedido...

Sarney: Ele me disse que tinha dito muito desaforo lá e eu disse a ele: "Mas Bresser, isso fica ruim para nós. A gente não paga e ainda insulta o credor!" [risos].

Valor: Maílson da Nóbrega foi escolha sua?

Sarney: Foi. Também pelo fato de ele ser do Nordeste.

Valor: Maílson fez o Plano Verão, que trouxe a questão da abertura comercial, privatizações e corte de gastos. A privatização e os cortes, porém, caíram no Congresso.

Sarney: A redução das tarifas de importação era do José Hugo [então ministro da Indústria e do Comércio]. As privatizações e o enxugamento da máquina administrativa caíram no Congresso. Aí ficou inviável.

Valor: Então o senhor optou pela política do "feijão-com-arroz".

Sarney: Essa expressão foi dele, Maílson. Como nós já estávamos no fim do governo, tínhamos que só administrar até a eleição. E aí, nós resolvemos, para chegarmos à eleição, redobrar o controle do déficit para não deixar a inflação estourar. Tanto que eu fiquei com essa culpa, mas a inflação em dezembro era de 20 e poucos por cento. Em janeiro de 1989 era 9%. Lembra-se disso? Quando ela dispara já não é por minha conta. É por conta das expectativas do Collor.

Valor: A agenda de modernização da economia, com a abertura comercial e as primeiras idéias de privatização, começa no seu governo...

Eu não tinha condição política de fazer uma recessão. Se fizesse, teria caído. O Castelo fez e teve que engolir o Costa e Silva

Sarney: Naquele momento nós começamos a modernização. O primeiro ponto era diminuir as tarifas de importação e abrir a economia. E foi feito. E também iniciamos as privatizações, que não tivemos condições políticas de levar à frente. Nós tínhamos a idéia de começar a privatizar as empresas nas quais o Estado não tivesse nenhum interesse visível.

Valor: O arranjo institucional para se cuidar melhor das contas públicas também é dessa época?

Sarney: Sim. Eu recebi o governo, em 1985, com déficit público primário de 2,58% do PIB e deixei com superávit de 0,08% do PIB. O Chico Lopes tem até um estudo em que diz que o maior esforço que houve em matéria de orçamento e despesa pública foi no nosso tempo.

Valor: Ao mesmo tempo a Constituinte abrigava uma avalanche de novas demandas...

Sarney: Demandas que eram muito maiores que as possibilidades. Era a bacia das almas. Todo mundo queria encontrar a felicidade dentro da Constituinte. Eu fui à televisão e disse que o país estava se tornando inviável. Aí veio o Ulysses e disse: "A fome é que é desestabilizadora, inviável é a fome".

Valor: O Congresso não estava suscetível aos apelos de certa racionalidade?

Sarney: Primeiro, não me deixaram participar da Constituinte. O Ulysses ficou na porta, não quis o projeto dos notáveis. Mas eu tentei fazer um pacto. Até anunciei o Ulysses como chefe do pacto social. Ele recusou e disse que aquilo era uma forma para destruir o PMDB. Eu queria fazer um pouco aquilo que eles fizeram na Espanha [o Pacto de Moncloa]: negociar antes, entre todo mundo, e depois levar a um plebiscito. Tanto que quando o Ulysses chega e me diz:

- Olha, presidente, pela Constituição passaram dez milhões de brasileiros.

Eu respondi:

- Olha, Ulysses, eu estou agora mais apreensivo do que antes, porque a única Constituição que tem 200 anos, no mundo, é a da Filadelfia, com 61 pessoas fazendo essa Constituição.

Hoje nós já temos 1.500 emendas à Constituição de 1988. O problema é desfazê-la.

Valor: Ulysses era mais centrado nas questões políticas?

Sarney: Ele gostava muito da política e pouco da administração. Ele foi um grande político. Na época do Cruzado, o Sayad estava muito preocupado em comunicar o Ulysses sobre o plano. Todo dia me dizia: "Tem que falar com o Doutor Ulysses". E eu dizia: "Olha, com o Doutor Ulysses falo eu". Quando fui falar com o Ulysses, dois dias antes do Cruzado, ele me disse

- Meu Deus! Que coisa! Não faça isso! É uma tragédia. Nós já estamos com problemas na Câmara, com não sei o quê. Faça de conta que você não me disse nada.

E quando o Sayad me perguntou:

- O senhor já comunicou o Doutor Ulysses?

Eu respondi:

- Não se incomode com Ulysses.

Não falei mais nada.

Valor: Seu governo também criou a Secretaria do Tesouro Nacional.

Sarney: Eu encontrei o caos na contabilidade pública, com vários orçamentos. Orçamento fiscal, orçamento monetário, orçamento das estatais. Ninguém e nada se sabia onde era nem como se processava. Não se podia saber exatamente qual era o déficit público porque não havia uma contabilidade para isso. Criamos a Secretaria do Tesouro, criamos o Siafi [sistema de acompanhamento de gastos do governo federal] e acabamos com a "conta de movimento". Acho que talvez pudesse dizer que fui o único que abdicou de poder. A conta movimento era um instrumento que o presidente da República tinha na mão para fazer tudo. Fazia-se qualquer coisa, era uma conta sem fundo, era um poço do qual o sujeito tirava, tirava e não colocava nada. Eu acabei com a conta de movimento. Houve greve do Banco do Brasil por causa da conta, achava-se que o banco ia acabar.

Valor: E a sua relação com os militares?

Sarney: Como tinha saído do PDS e os militares todos apoiavam o governo Figueiredo, eles passaram a ter uma imagem muito ruim de mim. Eu tinha que buscar junto a eles um tipo de relacionamento que assegurasse confiança. Eu tinha que assegurar imediatamente a minha legitimação junto aos militares.

Valor: E como o senhor fez isso?

Sarney: Chamando o Leônidas que, por sorte, era uma pessoa que eu conhecia há muito tempo, e estabeleci com eles dois critérios: primeiro, nós vamos fazer a transição democrática com os militares e não contra os militares. A partir desse momento dei tranqüilidade à área militar de que não ia fazer nenhum revanchismo. Segundo, eu disse a eles o seguinte: eu sou o comandante em chefe das Forças Armadas. Ninguém se preocupe com nada nessa área porque serei eu que irei defendê-los. Com isso eu evitava manifestações militares, ordem do dia. Resultado: não tivemos uma prontidão militar, eles voltaram aos quartéis e eu tive que fazer o que para legitimar? Dei a eles condições de profissionalização. E fizemos um plano de segurança nacional que mudou a concepção que havia. Em vez de se ficar com os olhos voltados para a Argentina, tínhamos que voltar para o outro lado. Naquela época nós tínhamos Sendero Luminoso, as Farcs, nas Guianas estavam vários movimentos de guerrilha. Nosso problema era na fronteira Norte e não na fronteira Sul.

Valor: Retomando a questão política: ao atender a agenda da esquerda, do grupo autêntico, o senhor teve algum desafogo no Congresso?

Sarney: Convoquei a Constituinte logo em seguida, estava no programa da Aliança Democrática, e fiz com absoluta velocidade. Tancredo podia fazer com maior espaço, pouco a pouco, mas eu não. Eu tinha que abrir tudo. Para permitir que essas forças que estavam contidas encontrassem o espaço democrático. Todo mundo perguntava: mas é uma loucura, como é que o Sarney assume agora e vai fazer eleição em novembro para prefeito das capitais? Qual era minha idéia? Eu dou um espaço para essas forças políticas irem disputar a eleição. Se não elas vão querer é me tirar daqui [risos].

Valor: Cabeça vazia, oficina do diabo?

Sarney: É o que eu digo, aquilo [o Palácio do Planalto] é um lugar perigoso. Dia e noite é para expulsar o presidente do lugar. Ele tem de se legitimar das 6h às 6h. Eu achava que havia cinco presidentes que tinham sido escolhidos com a destinação de serem destituídos.

Valor: Quais?

Sarney: Getúlio Vargas, no segundo mandato, Juscelino Kubitschek, o Jango [João Goulart], depois eu. O primeiro deles, o Artur Bernardes, que assumiu com uma contestação militar de todo jeito as revoltas de 1922 e 1924 ], todos aqueles tenentes e marchas e etc.. e teve que governar com estado de sítio o mandato todo. Mas foi competente, porque não interrompeu o processo democrático, institucional. O Getúlio [no segundo mandato] trazia do Rio Grande do Sul, uma tradição castilhista, borgista de Medeiros. Não tinha condições de saber como lidar com a democracia. Não fosse o suicídio, Getúlio teria saído como um dos maiores fracassos da vida pública nacional. O suicídio deificou o Getúlio. O Getúlio era desses condenados a sair e que saíram... Ele saiu e truncou o processo político. Juscelino entra como o herdeiro do Getúlio, com a questão militar do Getúlio que ainda estava viva. Sem apoio político, a UDN toda era uma coisa em cima dele, terrível. Os militares ressentidos com o golpe de 55, ainda querendo revanche contra isso. O Juscelino foi competentíssimo. Ele diz nas memórias que a maior coisa que ele fez não foi nada do que construiu. Foi não ter deixado que o processo democrático se truncasse no período dele. Porque essa é a função maior do presidente. Se ele ficasse no Rio de Janeiro, teria sido deposto. Como Dom João VI fugiu de Portugal para o Rio de Janeiro, o Juscelino fugiu para Brasília. Já o Jango não teve capacidade e foi deposto, como todo mundo sabia que ia acontecer. Se eu não tivesse a capacidade de enfrentar tudo isso e construir, nós tínhamos truncado o processo, como depois o Collor [Fernando Collor, sucessor de Sarney] faz. E o Collor não era destinado a sair. Ao contrário, superlegitimado pelas urnas, com tudo na mão. No futuro vai ficar claro que eu não deixei que a democracia morresse nas minhas mãos. Esse é que é o balanço do meu governo.

Valor: Ficou a marca da superinflação.

Sarney: Inflação com correção monetária não é a mesma coisa de inflação sem correção monetária. Era o único país do mundo que ainda tinha isso. Quando nós criamos esse colchão, o que é que acontecia? Acontecia o seguinte: o desemprego ficou lá embaixo, ficou dois vírgula...

Valor: A média dá quase 4%.

Sarney: Não. A média dá 2%. [olha os dados: a média do período 85/90 é 3,92% e a média de cada dezembro do período, 2,69%].

Valor: Ainda assim o senhor enfrentou mais de 12 mil greves.

Sarney: Enfrentei 12.600 mil greves. O Getúlio, que todo mundo diz que fez uma revolução trabalhista, quis aprisionar os sindicatos pelo Estado. Quando eu assumi, o PT quis que os sindicatos aprisionassem o Estado, com as greves e com tudo. Tive que ser extremamente tolerante. Eu tinha que ser fraco para ser menos fraco. Fiz o que era preciso, dentro de um plano estratégico que estava na minha cabeça e que eu cumpri. E cumpri todo, hein? Só não cumpri a parte final, porque fiquei isolado. Nunca pensei que o PMDB, que o Ulysses, fosse se afastar de mim. Eles fizeram uma avaliação errada, de que se ele fosse candidato [à Presidência] comigo, seria extremamente impopular.

Valor: Avaliação errada?

Sarney: Errada. O governo, na pior situação que estivesse, levaria de 15% a 20% dos votos para qualquer candidato. O Ulysses, se tivesse 10% dele mais os 15% do governo, iria para 25%. O Lula foi para o segundo turno com 16%. Se o Ulysses tivesse ficado comigo seria presidente, porque entrava para o segundo turno e ganhava do Collor. Eu achava que ia compor o Ulysses com o Aureliano de vice. Não pude. Isso foi a única coisa que falhou, senão eu teria concluído todo esse processo muito bem. Aí eu me isolei e aconteceu o fenômeno Collor.

Valor: Fernando Collor pediu ao senhor para decretar um feriado bancário antes de tomar posse. Ele falou ao senhor o que estava planejando?

Sarney: Eu o recebi, ele me disse que desejava, na véspera, fazer um feriado bancário, que a equipe dele já havia falado com a equipe do Maílson nesse sentido. Mas ninguém sabia o que era.

Valor: Nem por alto?

Sarney: Nada, nada, nada. Eu também não perguntei. Mas se eu não desse depois iam dizer - na minha cabeça - se eu não concordar e não der certo, vão dizer depois que o Sarney não deixou. A pessoa que mais reclamou disso foi a minha mulher.

Valor: Por quê?

Sarney: Porque, quando nós chegamos no Maranhão, o Collor congelou tudo, nós ficamos sem dinheiro.

Valor: O senhor ficou sem dinheiro?

Sarney: Fiquei. Eu fiquei lá na ilha [ilha do Curupu, no Maranhão]. Mas disse: "Vou ficar tranqüilo que aqui tem carneiro, tem outras coisas, a gente fica comendo aqui um tempo".

Valor: O Mercosul foi uma ação marcante do seu governo. Há quem diga hoje que ele nos engessa para outras negociações bilaterais, como com a Índia, por exemplo. O senhor faz alguma autocrítica em relação ao Mercosul?

Sarney: O Mercosul foi a coisa mais importante que aconteceu na América do Sul depois das nossas independências. Essa frase não é minha, mas eu acho verdadeira. Nós tínhamos que encerrar as divergências com a Argentina. E isso foi feito. Inclusive outra coisa que era subjacente, a corrida nuclear entre Brasil e Argentina. Essa era a prioridade A, que foi alcançada. O relacionamento do Brasil com a Argentina passou a ser outro. O desastre foi que nós fizemos um projeto de mercado comum, de integração de setores que íamos realizar num espaço de dez anos. Quando assumem o Collor e o Carlos Menem, eles resolvem transformar o Mercosul numa união aduaneira. Nossos objetivos passaram a ser exclusivamente tarifa zero. Nos atrasamos, mas esse projeto vai tornar-se realidade um dia. De qualquer maneira o comércio do Brasil com a Argentina aumentou de uma maneira extraordinária. Hoje a maior parte de nossas exportações são para a América do Sul.