Título: Os princípios e o fim do Cruzado
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2006, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

A Trama Há 20 anos, o presidente José Sarney e sua equipe econômica lançaram um ousado pacote de combate a uma crônica inflação. Mesmo fracassado, o plano marcou época

"Sarney! Você é Deus!", gritou um dos mineiros que deixavam as minas de Carajás, quando, naquele 30 de maio de 1986, o então presidente da República, José Sarney, desembarcava do Boeing presidencial com toda a equipe econômica que havia lançado o Plano Cruzado. Estavam a caminho da casa de hóspedes da ainda estatal Companhia Vale do Rio Doce, no projeto Carajás, em meio à selva amazônica, para uma reunião que discutiria, durante o fim de semana, todos os problemas do pós-Cruzado. Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, chefe da assessoria econômica do Ministério da Fazenda, vira-se para João Manuel Cardoso de Mello, assessor especial do ministério, e comenta: "Estamos ferrados". Quando a equipe de economistas preparou o Cruzado, lançado há 20 anos, em 28 de fevereiro de 1986, para frear uma inflação crônica - que estava na casa dos 16% ao mês -, não tinha a mais pálida noção de quais seriam, de fato, seus desdobramentos. Era uma experiência totalmente nova, inspirada nos estudos sobre inflação inercial elaborados por Persio Arida, André Lara Resende e Francisco Lopes, mais conhecido como Chico Lopes. O país vinha da brutal crise da dívida externa de 1982, de duas maxidesvalorizações da taxa de câmbio para reverter o buraco das contas externas e com uma inflação crônica. Começava, ainda, o processo de abertura política, com a eleição indireta de Tancredo Neves para a Presidência da República. Na economia, as idéias também já estavam em ebulição. Não era concebível a Nova República de Tancredo Neves impor planos ortodoxos e recessivos de combate à inflação - que, aliás, já vinham sendo aplicados desde o início dos anos 80, sem maior sucesso. Surgiram, assim, os primeiros rudimentos da discussão sobre a natureza inercial da inflação brasileira. Alimentada e realimentada pela correção monetária, a inflação, aqui, só reagia para cima, e aos saltos. Os preços subiriam amanhã porque haviam subido hoje. A indexação encarregava-se de perpetuar a inflação. O tratamento, portanto, tinha de ser de choque e não mais gradualista - "um choque heterodoxo", com congelamento de preços, como Chico Lopes havia descrito, ainda preliminarmente, em meados de 1984. O debate teórico entre economistas à margem do poder crescia na mesma proporção da inflação, que superava a casa dos 200% em 1984. Persio Arida e André Lara Resende também trabalhavam nesse tema. Ambos se posicionaram contra o congelamento de preços e defenderam a neutralização da inflação mediante a "otenização" da economia (indexação total às Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, a ORTN). Ou seja, se todos os preços corressem na mesma velocidade e na mesma direção com o mesmo indexador, o resultado seria zero. Estava aberta a trilha da reforma monetária que, após depurada, debulhada e amadurecida nas discussões acadêmicas, viria fundamentar o Plano Cruzado dois anos depois. Essas propostas foram apresentadas a Tancredo Neves, durante a formação do governo, mas ele tinha outras idéias. Escolheu para a Fazenda Francisco Dornelles - seu sobrinho, de linha ortodoxa, e secretário da Receita Federal do governo João Figueiredo - e compôs uma diretoria altamente conservadora para o Banco Central, comandada por Antônio Carlos Lemgruber. João Sayad - desenvolvimentista convicto, indicado pelo PMDB para o Ministério do Planejamento - apostou no pensamento alternativo e levou Arida para assessorá-lo. Com a doença de Tancredo, o vice José Sarney assumiu a Presidência da República e manteve a indicação de Dornelles, que impôs um congelamento parcial de preços, aumentou a taxa de juros, restringiu o crédito e cortou gastos públicos, mas durou pouco na Fazenda. Pediu demissão em agosto de 1985. A inflação marchava para mais de 300% acumulados no ano. As divergências entre Fazenda, Banco Central e Planejamento eram colossais. Dornelles foi substituído pelo empresário Dílson Funaro, então na presidência do BNDES, que trouxe os economistas da Unicamp - Belluzzo e Cardoso de Mello. A presidência do Banco Central foi ocupada por Fernão Bracher, que, junto com Sayad, aglutinou os economistas heterodoxos da PUC-Rio. Iniciaram-se aí as discussões de governo para a desindexação e reforma monetária, sem qualquer garantia de que aquele seria um programa que o Palácio do Planalto aprovaria. Entre idas e vindas, acertos e desacordos na equipe, o presidente Sarney fez uma reforma ministerial em que quase teve de tirar Sayad para rearrumar as forças políticas do governo. Funaro trabalhava para Sayad permanecer no cargo e manter coesos os economistas que preparavam o plano heterodoxo. A inflação galopava, o novo ministério tomou posse em 14 de fevereiro e o Plano Cruzado foi anunciado 14 dias depois. Fiscalização contra o aumento de preços: o plano transformou o presidente em um governante sem legitimidade política em uma unanimidade nacional, e fez a alegria do PMDB O programa ousado, que transformou o presidente José Sarney de um governante sem legitimidade política em uma unanimidade nacional, e fez a alegria do PMDB, pretendia deter de uma só vez a inflação. Suas principais medidas foram:

- Introduzir uma nova moeda, o cruzado, em substituição ao velho e superinflacionado cruzeiro;

- Converter todos os contratos pela média dos últimos seis meses, inclusive os salários;

- Acabar com a indexação;

- Congelar, a partir daí, todos os preços da economia;

- Reajustar o salário mínimo em 15%;

- Conceder um abono de 8% para todos os salários;

- Criar um "gatilho", pelo qual, quando a taxa de inflação acumulada chegasse a 20%, os salários seriam reajustados;

Em fevereiro de 1987, Sarney declarou moratória da dívida externa; em março, Sayad pediu demissão. Funaro saiu em abril

- Fixar a taxa de câmbio.

Com isso, deu-se caráter distributivo a um plano de estabilização, colocando algo como US$ 10 bilhões à disposição do consumo. A conta foi feita por Arida na época, para sustentar seus argumentos contra o aumento dos salários. Parecia um milagre. A taxa de inflação (IGP-DI), que em janeiro e fevereiro de 1986 havia chegado a 17,79% e 14,98 %, respectivamente, apontando para a casa dos 400% no ano, despencava. Em abril houve deflação de 0,58%. Os problemas, porém, começaram a aparecer bem cedo, conspirando contra a estabilidade. O aumento dos salários, a abrupta queda da inflação, a maior oferta de crédito e o processo de monetização incitavam a demanda. O congelamento de preços com o consumo nas alturas gera ágios, sumiço de bens nas prateleiras dos supermercados, aumento das importações, queda das exportações. Descongelar, que era o que se pretendia fazer em no máximo 90 dias, virou palavrão para o presidente da República e para o PMDB, que se submeteria às urnas nas eleições de 15 de novembro. Estava criado um enorme problema para os economistas, pois, para iniciar qualquer processo de descongelamento, seria preciso, antes, esfriar a demanda. Caso contrário, a inflação voltaria com toda força. Sayad, ao contrário de Arida e Lara Resende, achava que o consumo exacerbado era uma "bolha" que desapareceria naturalmente. Não era. Os economistas, que haviam trabalhado em regime de consórcio durante toda a preparação do plano, superando aqui e ali suas divergências de diagnóstico, se dispersaram. E mais, criou-se entre eles uma profunda dissonância. No Ministério da Fazenda, com Funaro, estavam Belluzzo e Cardoso de Mello. No Banco Central, sob o comando de Fernão Bracher, trabalhavam Lara Resende, na diretoria da Dívida Pública, e Luiz Carlos Mendonça de Barros, na diretoria de Mercado de Capitais. Arida, que durante toda a preparação do plano havia assessorado João Sayad no Ministério do Planejamento, livre da incumbência de preparar o descongelamento, que não viria, assumiu a diretoria da Área Bancária. Edmar Bacha presidia o IBGE. Chico Lopes foi incorporado à equipe. As divergências que se abriram entre eles não eram sutis. Eram de fundamentos. E aí, as coisas começaram a desandar. Fazenda e Banco Central exigiam uma resposta fiscal, com cortes de gastos públicos como instrumento de esfriamento da demanda. Tarefa que cabia a Sayad, no Planejamento. Este, porém, não acreditava na eficácia dos cortes de gastos de custeio, já que o grande buraco nas contas públicas, dizia, era financeiro. Vinha da dívida externa e dos juros internos. E, no orçamento das empresas estatais, reclamava dos preços que já vinham desalinhados do congelamento de tarifas feito antes, por Dornelles. A renegociação da dívida externa, necessária tanto para restabelecer fluxos de capitais externos quanto para reduzir os pagamentos de juros que pressionavam o déficit público, estava paralisada. Os credores exigiam um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para avalizar qualquer negociação. As contas externas eram frágeis. As reservas cambiais somavam minguados US$ 9 bilhões, e boa parte disso não tinha liquidez. O Banco Central aumentava paulatinamente os juros, para conter a demanda. Medida que irritava Funaro e os economistas da Fazenda, pois, para eles, o aumento dos juros elevava os custos de produção e se transformava, lá na frente, em pressão inflacionária. O ministro da Fazenda, porém, tinha uma visão muito mais otimista de todo aquele processo do que os economistas do Banco Central e do Planejamento. Nas reuniões da equipe, tentava espantar pessimismos. Ao presidente Sarney, Funaro dourava a pílula. O plano escapava entre os dedos de seus idealizadores. As divergências na equipe ajudaram Sarney a formar sua própria convicção: "Então, continuamos em lua-de-mel com o Plano Cruzado", disse o presidente no final do encontro de Carajás, do qual deveria sair um grande consenso para recolocar o Cruzado nos trilhos. O general Ivan de Souza Mendes, chefe do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), que estava ao lado de Sarney, olhou para os economistas, meio perplexos, e comentou: "Acho que não foi bem isso que vocês disseram aqui". Daquele encontro de fim de semana, de qualquer forma, saiu o "Cruzadinho", em julho. Um pacote de medidas que criava empréstimos compulsórios sobre gasolina, álcool, automóveis e viagens internacionais. Era uma iniciativa com duas pontas: esfriar a demanda - com a redução da renda disponível -, conforme desejavam os economistas; e arranjar recursos para alavancar os investimentos públicos, que era a vontade de Sarney. O grupo da economia apresentou uma proposta que calibrava em Cz$ 150 bilhões a retirada de dinheiro do consumo. O presidente Sarney cortou essa pretensão para Cz$ 40 bilhões. Criou-se, com esses recursos, o Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND), que financiaria um plano de metas de investimentos públicos. Foi um fiasco. Recebido como tímido demais para conter o consumo, o "Cruzadinho" veio ainda acompanhado de uma tentativa de expurgar do índice de inflação o impacto dos compulsórios sobre os preços. Em outubro, com a liberação de importações e redução das exportações para abastecer o mercado doméstico, as contas externas, que já não eram nada boas, começaram a se deteriorar. A balança comercial passou a acumular déficits. As negociações com os credores internacionais não avançavam e Funaro se recusava a conversar com o FMI. Céticos e com as relações já bastante atritadas, os economistas do Cruzado começaram, em outubro, a trabalhar novamente numa correção de rumos. Surgiram três propostas distintas: o Planejamento queria fazer o controle da demanda por meio de um ajuste fiscal pelo Imposto de Renda; a Fazenda advogava a idéia de aumento de preços para produtos selecionados, de consumo de elite, e elevação de impostos indiretos; o Banco Central era favorável ao aumento do imposto de renda, corte nas despesas públicas e contra a elevação de preços. Impasse total. Sarney arbitrou a favor da Fazenda. Funaro e Cardoso de Mello impuseram o pacote da Fazenda, o Cruzado II, que ficou conhecido, internamente, como "manuelaço". Foi devastador. As medidas, anunciadas seis dias após as eleições de novembro, foram recebidas pela sociedade como uma traição. O pacote trazia um aumento de mais de 100% na alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cobrado sobre o preço final dos automóveis, bebidas alcoólicas e cigarros. Além de uma lista de aumento de preços: 60% para a gasolina e o álcool; 80% para os automóveis; 25% para o açúcar; 30% para as tarifas de telefonia; 180% para as tarifas postais; e 40% para a energia elétrica. Todos os demais preços da economia começaram a ser reajustados na base de 100%. A inflação, medida pelo IGP-DI, saltou de 0,63% em julho para 7,56% em dezembro e 27,58% em maio de 1987. Em meio ao desastre e à desmoralização, ainda houve uma tentativa de Dílson Funaro de reunir todos em torno de uma nova proposta de estabilização para janeiro de 1987. Não havia mais o menor clima. A equipe estava dissolvida. O Plano Cruzado tinha acabado. Em 20 de fevereiro de 1987, sem reservas cambiais, Sarney declarou a moratória da dívida externa. Em 25 de março, Sayad pediu demissão. Funaro saiu em 29 de abril. O presidente ainda aprovaria mais duas tentativas de estabilização. O Plano Bresser, em 12 de junho de 1987; e o Plano Verão, em 15 de janeiro de 1989. A inflação acumulada de março de 1989 a março de 1990, quando Sarney passou a faixa presidencial para Fernando Collor de Mello, chegava a 4.853%.