Título: Papageno
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 09/02/2006, Brasil, p. A2

O ano de 2006 promete. São 250 anos do nascimento de Mozart. Os festivais de comemoração do importante aniversário espalham pelo mundo a música que consola a alma machucada pelo ruído eleitoral e seu foguetório de idéias insensatas. Em fins de janeiro, ouvi "A Flauta Mágica" na Metropolitan Opera House de Nova York, em companhia dos netos, que ficaram deslumbrados. Quem não ficaria? A música de Pamino e Tamina é a mais pura canção de amor que Mozart escreveu. Menos apaixonada que a de "Così Fan Tutte". Menos desesperada que a de Elvira em "D. Juan". E menos brincalhona que a de "As Bodas de Fígaro". Mas, alegre e triste a um só tempo, fala diretamente ao coração. O coração se alegra, mas a cabeça continua de olho na inflação, que vai sofrer o impacto de duas forças antagônicas em 2006. De um lado, a valorização do real empurra a inflação para baixo. De outro, o aumento do salário mínimo, muito acima da taxa de crescimento da produtividade do trabalho, pressiona a inflação para o alto. O rendimento de 40 milhões de brasileiros corresponde ao salário mínimo que também influencia milhões de outros salários. Portanto, um aumento do salário mínimo afeta os custos das empresas, com forte efeito inflacionário na ausência de uma política monetária restritiva. O impacto da valorização cambial pode compensar o do aumento do salário mínimo sobre a inflação. Mas a combinação de um aumento de salário e valorização cambial reduz a competitividade dos produtos brasileiros e prejudica o crescimento no médio e longo prazo. A tendência do câmbio tem sido de valorização, que os juros altos, a melhora dos indicadores de solvência externa, a convergência da inflação para a meta e o superávit primário (que estabiliza a relação da dívida pública/PIB) reforçam. A intervenção do BC no mercado de câmbio não pode contrabalançar a oferta de dólares no mercado internacional e a redução do risco-país. A expectativa de valorização cria a demanda por dívida denominada em real. O círculo "valorização esperada - entrada de capitais" em geral se prolonga até que um evento adverso se materializa sem aviso prévio. Nesta semana, dois anúncios estimularam a expectativa de valorização do real. O primeiro traz, na hora errada, a proposta de cortar os impostos dos investidores estrangeiros em títulos da dívida pública interna. O segundo é um projeto de mudanças nas regras cambiais que joga fora o bebê junto com a água da bacia. O projeto contempla o desejável fim da cobertura cambial das exportações. Mas ao mesmo tempo introduz a indesejável possibilidade de depósitos em dólares em bancos no país e revoga leis que regulamentam o mercado de câmbio de forma a permitir a quem enviou dólares para o exterior no passado, sem obedecer às regras vigentes, trazê-los de volta, uma vez eliminada a exigência do registro da movimentação de capitais. Hoje, além da valorização cambial, uma pesada carga tributária distorce os custos das empresas. Impostos ruins minam a eficiência com alíquotas elevadas recheadas de isenções. A simplificação e redução dos impostos exigem o controle dos gastos públicos. Mas como acreditar nas promessas do ministro Palocci, que prega a redução e melhoria do gasto público, se todas as estatísticas evidenciam o contrário?

Aumento do mínimo afeta custos das empresas

Os gastos primários do governo seguem em alta, diz o editorial do Valor (6/2). Em termos reais cresceram 10,1% em 2005, quatro vezes mais do que o PIB, cujo crescimento se calcula em 2,5%. E a estrutura dos gastos piorou. Os gastos primários em 2005 foram cinco vezes o valor dos gastos em investimentos. Em maio do ano passado, o governo reajustou o salário mínimo em mais do dobro do crescimento da produtividade. Em 2006, repetirá a façanha com mais exagero. As conseqüências se estenderão por vários anos. Em ano eleitoral, o governo prefere ignorar o nó fiscal e abraçar a política batizada de populismo econômico: gastos em alta e controle da inflação pelo uso da valorização cambial. A inércia das variáveis econômicas permite que a política se mantenha por algum tempo antes que seus efeitos se façam visíveis. Acadêmicos e filósofos acham difícil interpretar os símbolos na "Flauta Mágica": três senhoras, três templos e três meninos, que aparecem suspensos sobre três pássaros gigantes na montagem de Nova York. Mas acham ainda mais difícil decifrar os sinais contraditórios de um governo que prometeu o espetáculo do crescimento e se engajou na política da mediocridade. Segundo o BC, em 2006 o crescimento pode ficar em torno de 3,5 a 4%. Os investidores esperam que o BC mantenha a política corrente com cortes da Selic até que ela chegue a 15% na metade do ano. Se isso ocorrer, o crescimento não chegará ao teto projetado pelo BC, pois os juros reais continuarão altos e a valorização do real, excessiva. Mas pode ser pior. O BC terá de pôr na balança a expansão dos gastos públicos e o aumento do salário mínimo. Nesse caso, poderia tentar neutralizar a política fiscal com cortes menores da Selic e sustentar a valorização do real. O crescimento seria ainda mais baixo do que os 3,5% projetados. Neste mundo de incertezas, não dura a alegria que Papageno nos transmite na "Flauta Mágica". O caçador de pássaros pensa que, com açúcar, pode atrair as mulheres. E neste aspecto lembra Lula que, com programas de última hora, tenta seduzir os eleitores. Papageno tem um pouco de todos os jovens. Além de música, ele quer duas coisas: comida e sexo. E é verdadeiro e transparente - ao contrário de Lula, que começa a se assemelhar cada vez mais a um político velho. Papageno é também a voz da audiência na ópera: faz as perguntas que gostaríamos de fazer. Mas daqui até novembro, nem mesmo um batalhão de Papagenos conseguirá extrair respostas sensatas de um presidente que já se encontra totalmente engajado na propaganda da campanha eleitoral.