Título: Com ou sem cobertura?
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 09/02/2006, Opinião, p. A17

A polêmica da liberalização dos fluxos da conta de capital do balanço de pagamentos volta à cena, tendo agora como motivação a proposta de projeto de lei complementar apresentada ontem no Senado Federal. A proposta apregoa o fim da chamada "cobertura cambial", que obriga os exportadores a fazerem a conversão da moeda estrangeira obtida com as receitas externas para a moeda nacional no prazo máximo de 210 dias a contar da realização da exportação. Ou seja, nesse prazo máximo todo o dólar ingressado no país com origem da venda de produtos no mercado internacional tem de ser convertido em reais. Esses prazos têm variado ao sabor do maior ou menor interesse da política econômica na entrada de recursos externos. O fulcro da questão que coloca o tema novamente em debate é o princípio da obrigatoriedade de conversão da moeda estrangeira para a moeda nacional que, vale lembrar, não atinge apenas os exportadores, mas a grande maioria das transações abrigadas nas rubricas do balanço de pagamentos do país. Os exportadores, com o apoio da Fiesp e da Funcex, querem garantir a liberdade de converter dólares em reais no momento que lhes for mais conveniente. Ou, colocando de forma mais objetiva, querem garantir o direito à não conversão. Manteriam a moeda estrangeira em contas bancárias dentro ou fora do país e com essa moeda dariam curso ao pagamento de obrigações devidas em dólar ou outra moeda forte. Se aprovada a proposta dos senadores, o país terá dado o passo mais ousado na área cambial desde a era de Vargas, em 1933, pois data desse ano o decreto 23.258, que ainda hoje regula a questão. Abre uma brecha para que outros segmentos da sociedade venham a reivindicar o mesmo tratamento, incluindo, no extremo, o direito de qualquer cidadão brasileiro ter contas em dólar no país e poder entrar e sair do território nacional com moeda estrangeira no bolso, sem limites. A polêmica que se levanta em torno do assunto está justamente centrada nas perspectivas das "brechas". Isso preocupa gente do governo e da área acadêmica, com alguns temendo que o caminho aberto pelo segmento das exportações ganhe intensidade e amplitude no rumo extremo da dolarização que há anos permeia os meandros da economia argentina, mas que tem se mantido longe do modus operandi e da cultura dos brasileiros. Essa assimetria é que explica as diferenças de fundamento entre o Plano Cavallo e o Plano Real. Mas as preocupações básicas e imediatas, para aqueles que temem a medida, são de outra ordem. Têm a ver com o fantasma da vulnerabilidade externa que sempre ronda a cabeça de alguns economistas, faça chuva ou faça sol. Hoje há fluxo externo confortável, mas e amanhã?

Se a proposta que apregoa o fim da cobertura cambial for aprovada, país terá dado o passo mais ousado na área cambial desde a era de Vargas

O economista João Sicsú, do Instituto de Economia da UFRJ, é um dos que questiona a abertura da conta de capital. Ele contesta várias teses que procuram vincular a medida a benefícios como, por exemplo, a garantia de maior crescimento do país, a maior estabilidade da taxa de câmbio e a maior integração financeira da economia brasileira. Acha que essas são "meras crenças subjetivas e vagas" já refutadas no passado. Sicsú tem contestado nos últimos anos a tese da conversibilidade como solução para os problemas nacionais e, no texto "Rumos da Liberalização Financeira Brasileira", a ser publicado proximamente na Revista de Economia Política, chega a refutar as informações que, segundo ele, saíram de pesquisa da Fiesp, segundo a qual em 14 países emergentes com câmbio flutuante só no Brasil haveria cobertura cambial. Sicsú garante que obteve resultados diferentes em pesquisa semelhante. Apresenta em seu texto uma lista de dez países emergentes onde se pratica cobertura cambial nas exportações: Tailândia, Venezuela, Malásia, África do Sul, Índia, Chile, Colômbia, Argentina, Marrocos e Coréia do Sul. A lista deixa o Brasil de fora. Na ponta oposta, Persio Arida tem se posicionado com veemência entre os economistas a favor da abertura da conta de capital. Seu argumento faz sentido: o desentrave do fluxo de entradas e saídas de divisas sinalizaria um comportamento mais maduro com relação ao compromisso de respeito aos contratos, fazendo desaparecer o eventual medo de moratórias e inadimplências que ainda hoje afetam a taxa de risco do país. Isso abriria caminho para a queda dos juros internos e para o alongamento dos prazos do crédito dentro do país. Persio trouxe para o debate uma visão mais ampla da questão. Mas o tema mais parece um polvo, com tentáculos que se espalham em implicações diversas. Os empresários, quando propõem a abertura da conta capital, têm apenas uma única motivação: a desvalorização da moeda nacional. Estão convencidos de que uma vez liberada a cobertura cambial nas exportações a taxa de câmbio deixará de apreciar, muito embora isso não tenha sido testado em lugar nenhum. O que move a apreciação ou depreciação do câmbio, em regime de flutuação, é a maior ou menor oferta da moeda estrangeira à qual o comércio externo está referenciado. O tema é complexo e tem envolvimentos que passam ao largo do debate. O principal deles tem raiz no desequilíbrio entre gastos e receitas do setor público, pois uma forma que o governo federal tem de financiar o descompasso de suas contas é justamente a troca compulsória de divisas, viabilizando que os reais permaneçam aplicados em títulos públicos, a juros elevados. No fundo, no fundo, o fluxo de divisas que tem origem no comércio externo é hoje uma das principais fontes de financiamento do setor público brasileiro. As reservas internacionais do país crescem no mesmo passo do aumento da dívida pública, agravada pelos custos elevados. Isso não tem nada a ver com as operações cambiais propriamente ditas, mas sim com os problemas fiscais do país. Portanto, há implicações diretas entre a cobertura cambial nas exportações e o déficit público nominal. Romper com essas relações espúrias é o que todos almejam. Seria uma maneira, nesse caso específico, de deixar a nu o setor público brasileiro! Este talvez seja o mais importante efeito da proposta apresentada ontem ao Senado e, se assim for, que assim seja, ainda que o real se mantenha valorizado.