Título: Governo tem restrições a projeto
Autor: Alex Ribeiro
Fonte: Valor Econômico, 09/02/2006, Finanças, p. C1

Câmbio Relaxamento do controle à lavagem de dinheiro e vulnerabilidade do sistema preocupam

Embora apóie a iniciativa de extinguir a cobertura cambial nas exportações, o governo tem uma série de restrições ao projeto de liberalização cambial apresentado ontem no Senado, segundo um técnico que participa das discussões. Dois pontos provocam especial preocupação: a proposta relaxa controles contra a lavagem de dinheiro e deixa o sistema financeiro vulnerável a eventuais corridas bancárias. Baseado em proposta da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), o projeto foi formalmente apresentado pelo pelo líder do governo no Congresso, senador Fernando Bezerra (PTB-RN), e pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). "O projeto aumenta a competitividade dos exportadores", disse o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. Bezerra relatou que, nos últimos dias, manteve encontros no Banco Central, Fazenda e Planejamento - e que, salvo algumas ressalvas, eles apóiam a proposta. "O projeto é um ponto de partida, e pode ser modificado", disse. "Vamos submeter o projeto a audiência públicas", disse Calheiros. Uma fonte do governo que acompanha o assunto afirma que, na essência, a proposta acerta ao pretender o fim da cobertura cambial, que é a obrigação das empresas trazerem ao Brasil os dólares de suas exportações e convertê-las em reais. O próprio Conselho Monetário Nacional (CMN), afirma essa fonte, já vinha avançando nessa direção, ao ampliar de 180 para para 210 dias o prazo para os exportadores fecharem o câmbio. O prazo mais dilatado foi, na verdade, uma espécie de experiência de laboratório para, num passo seguinte, acabar a cobertura cambial. Uma das principais conclusões dessa experiência é que, ao contrário do que alguns previam, a medida não teve efeito sobre a taxa de câmbio. Chegou-se a especular que, ao ter maior liberdade, os exportadores iriam adiar o fechamento do câmbio, depreciando a moeda. No fim das contas, porém, não se viu alteração de comportamento dos exportadores. Desde março de 2004, quando a regra dos 210 dias entrou em vigor, o prazo médio entre o embarque e o fechamento de câmbio tem permanecido em torno de 120 dias. A mudança teve efeito neutro sobre a taxa de câmbio. "Avaliações ingênuas dizem que o fim da exigência de cobertura cambial irá depreciar o câmbio", diz a fonte. "Não é bem assim." O efeito seria, portanto, puramente tornar o sistema mais eficiente. Hoje, empresas que são exportadoras e ao mesmo tempo importadoras ou devedoras em dólar fazem mais operações cambiais que o necessário. De um lado, fecham um câmbio para o ingresso de dólares de suas exportações; de outro, fecham mais um câmbio para fazer pagamentos de importações, de dívidas ou a constituição de disponibilidades no exterior. A crítica feita por esse técnico ao projeto é quanto à criação dentro do país de contas em dólares para exportadores. Os bancos passariam a ter, dessa forma, grandes somas de depósitos em dólares. O modelo poderá criar problemas em uma eventual corrida bancária. O BC é classicamente o emprestador de última instância ao sistema financeiro justamente porque pode imprimir moeda. Mas não pode imprimir dólares. O socorro estaria limitado, portanto, ao volume de reservas internacionais. Outra restrição feita por esse técnico é o fato de que seria criado um grande grupo de privilegiados - os exportadores - que poderiam ter contas em dólares. Hoje, elas já são admitidas, mas apenas em situações especiais, com valores residuais. Ao abrir a exceção para os exportadores, outros grupos podem reivindicar o mesmo direito. "Vai ser difícil limitar", alerta a fonte. Bezerra diz que a vantagem de das contas em dólares é que elas seriam incluídas num conceito mais amplo de reservas internacionais, melhorando a percepção de risco do país. "Faltou combinar com o adversário", diz a fonte. "As agências de rating não admitem esse conceito de reservas." A fonte argumenta que a constituição de disponibilidades no exterior pelos exportadores, em vez de contas em dólares no país, já atenderia ao princípio de reduzir os custos de transação. Visto de uma perspectiva mais ampla, seria até bom para a análise de risco das empresas, ajudando-as a se descolar do risco-país. Outro ponto que preocupa é o fato de o projeto, de uma só tacada, revogar uma série de leis, decretos e decretos leis que formam a estrutura do sistema de câmbio. A fonte lembra que a legislação é complexa, cheia de detalhes e que é necessário ter cuidado em revogar coisas que, bem ou mal, funcionam. Um exemplo é a Lei 4.131, de 1962, que criou a exigência de registro de capitais estrangeiros que ingressam no país. Há uma série de problemas na lei, diz a fonte, e é necessário corrigi-los. Mas sua simples revogação pode causar mais danos que benefícios - no caso, seria relaxado o controle à lavagem de dinheiro. O principal problema da Lei 4.131 é o chamado capital contaminado. São capitais estrangeiros investidos no país que não têm certificação. Diz a lei que só podem remeter remuneração sobre o capital e fazer a remessa de seus valores as empresas que tiverem o certificado de ingresso. Pois há, hoje, um volume não calculado de capitais investidos no país - incluindo empresas, grandes, sólidas e tradicionais - que não tem registro. O capital contaminado tem várias origens: empresa não conseguiu comprovar o investimento em 1962, quando a lei foi criada; investimentos feitos por meio de conversão de dívida externa; reinvestimento de juros sobre capital próprio; empresas que se instalaram no país por meio de transferências internacionais de reais. A solução para o problema não é trivial e, há anos, vem sendo estudada por especialista na área no governo. Mas o fim da Lei 4.131 levaria, de outro lado, a uma série de problemas. Um deles é que é essa lei que impõe o registro dos capitais - principal mecanismo de controle à lavagem de dinheiro. Também está na Lei 4.131 a definição de contrato de câmbio - sem ele, deixará de existir operações de Adiantamento de Contrato de Câmbio (ACCs), principal forma de financiamento de exportadores. O contrato de câmbio também é a matéria-prima para as estatísticas de balanço de pagamentos do BC. Sem ele, o BC ficará sem poderes para exigir informações. O projeto extingue, ainda, o artigo 65 da lei do Plano Real (nº 9.069, de 1995), que fixa que o ingresso e a saída do país de moeda nacional e estrangeira serão feitos exclusivamente por transferência bancária, excetuando valores equivalentes a até R$ 10 mil. Assim, permite o transporte de malas de dólares, abrindo espaço para a lavagem de dinheiro. Para acabar com a cobertura cambial, o projeto revoga o Decreto 23.258, de 1933. Mas esse decreto também proíbe a operação de doleiros. "Se o decreto for revogado, a atividade dos doleiros se tornará legal", diz a fonte.