Título: Desvincular receitas e vincular despesas
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2006, Brasil, p. A2

Novas idéias de uma política fiscal de longo prazo, centrada no controle das despesas, estão sendo avaliadas pela área econômica do governo. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, retomou o assunto, que foi objeto de debate em meados do ano passado, em torno de um programa fiscal para os próximos dez anos, e sugeriu que a única forma de se ter uma taxa de juros real baixa e maior potencial de crescimento econômico está numa profunda reorganização das contas públicas, por meio de um "acordo social", suprapartidário. O que ele está falando é numa mudança constitucional importante, que viabilize as desvinculações de receitas. O secretário-executivo do ministério da Fazenda, Murilo Portugal, que tem se debruçado sobre essas questões, aponta alternativas possíveis: fazer as vinculações de gastos sobre as despesas primárias correntes, ao mesmo tempo em que se coloca freios no crescimento real destas. Ou seja, hoje, por exemplo, é obrigatória a aplicação de 18% do total das receitas federais em educação. Sempre que a receita cresce, crescem juntos os gastos vinculados, dando um caráter pró-cíclico à política fiscal (expansionista em momentos de crescimento). Mais correto do ponto de vista econômico, na linha anticíclica (política fiscal mais frouxa em períodos de recessão), seria destinar um percentual da despesa primária corrente para a educação. Sendo que esta não poderia crescer mais do que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no período. Ao contrário, deveria apenas ser corrigida pela inflação, mantendo-se estável em termos reais ao longo de vários anos. Os gastos correntes têm crescido de forma acelerada nos últimos dez anos. Todo o ajuste fiscal, com o cumprimento de metas de superávit primário há sete anos consecutivos, tem sido feito na base do aumento da carga tributária. Mesmo no governo do PT, que havia assumido compromisso de cortar as despesas e não aumentar os impostos, os gastos correntes estão em franco progresso. Chegaram a R$ 351,93 bilhões em 2005, com crescimento de 16,3% sobre o ano anterior. Isso representou 18,21% do PIB (em comparação com os 17,13% do PIB gastos em 2004). Desses, apenas 0,51% do PIB foram para investimentos, que aumentam o crescimento potencial. Para este ano, está em vigor o teto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que fixa em 17% do PIB o total dos gastos correntes. Mas há muitas exceções a serem consideradas nessa conta. Se as despesas obrigatórias forem financiadas com o aumento das receitas, isso é abatido do cálculo, o que faz desse um teto flexível. O programa fiscal de longo prazo, segundo Portugal, "não saiu nem pode sair da nossa agenda porque talvez seja dos temas macroeconômicos mais importantes que a sociedade brasileira tem que debater e decidir". Não há uma proposta pronta elaborada pelo Executivo nem é essa a intenção, agora. Trata-se de um assunto muito complexo, difícil de ser negociado na medida em que cada setor que tem suas receitas orçamentárias garantidas, carimbadas, tem também um "lobby" forte no Congresso. "De fato esse é um tema muito difícil de ser tratado porque o Brasil tem carências muito importantes em várias áreas, e o gasto público exerce um papel relevante. Mas seu debate é essencial", sustenta o secretário. O governo só pretende avançar na elaboração de propostas de uma emenda constitucional se houver boa receptividade da sociedade para isso. Outra hipótese considerada é a de manter os atuais níveis de vinculação, mas desvincular o crescimento da receita. Isso, com o tempo, iria reduzindo sensivelmente as verbas carimbadas com o selo do gasto obrigatório. Ou ainda atrelar as destinações de recursos às despesas primárias mas criar metas de desempenho dos setores envolvidos.

"É o primeiro ano de eleição sem crise", diz Portugal

Ele vê no modelo atual, onde 90% do orçamento já é previamente distribuído e apenas 10% é objeto de discussão no Congresso Nacional, dois problemas: "o fato de ser pró-cíclico, pois sempre que aumentam as receitas aumentam-se os gastos; e a questão da eficiência, já que quando o setor tem recurso protegido, não precisa brigar por ele nem mostrar eficiência". O sistema de vinculações de receitas foi disseminado na Constituição de 1988, quando, saindo do regime militar, a participação do Congresso nas decisões de alocações dos recursos públicos ainda era muito pequena. Na ocasião, além dos 18% das receitas federais teriam que ser aplicados em educação 25% das receitas municipais. "Será que essa é ainda é a participação correta? Houve mudança na estrutura etária da população, houve migração entre os municípios, será que esse é um sistema racional?", indaga. No caso da saúde, a emenda constitucional nº 29 estabelece correção das receitas pela variação do PIB, numa base móvel. "Se neste ano houver uma epidemia e tivermos que aumentar o gasto, no ano que vem a variação do gasto virá sobre o que se gastou também na epidemia que já não existe mais. Será essa a melhor maneira de organizar o gasto?", continua. Portugal acha que para aumentar a eficiência do gasto público é preciso uma rigorosa restrição orçamentária, que force um aumento da produtividade e da eficiência da despesa. O país deu uma virada fantástica no balanço de pagamentos nos últimos anos e hoje já é "grau de investimento" no quesito das contas externas. Avançou também na forma e no controle das contas públicas internas. Não há mais bancos estaduais emitindo moeda, as dívidas dos estados e municípios estão renegociadas, aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e vêm sendo cumpridas, com rigor, as metas de superávits primários. O país fez também, nos últimos três anos, progressos importantes no gerenciamento das dívidas públicas interna e externa. Falta, porém, um bom caminho para melhorar o perfil do endividamento interno. "Teremos agora o primeiro ano de eleição sem crise dos últimos dez anos. Pode ser que tenhamos uma queda na relação dívida/PIB num ano eleitoral. Acho que estamos chegando ao fim dos ciclos de 'stop and go', de crescimento e de políticas", sublinha Portugal. Restou, ainda, mexer na parte mais dolorosa do ajuste fiscal, que é pôr freios à despesa. Ou seja, redimensionar o Estado brasileiro. O governo passado ignorou solenemente essa questão e o governo Lula está chegando tarde ao entendimento. Com certeza, o próximo presidente terá que enfrentar esse desafio.