Título: Lula quer fim de consenso para destravar Doha
Autor: Raymundo Costa
Fonte: Valor Econômico, 13/02/2006, Brasil, p. A5

Relações externas Para presidente, sistema atualmente em vigor na OMC "atrapalha a verdadeira discussão"

Vestido com uma camisa preta africana, presente do presidente Thabo Mbek, de bom humor e elogiando a própria forma física, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva propôs ontem o fim do sistema de consenso na Organização Mundial do Comércio (OMC), para destravar as negociações da Rodada Doha. "A política de consenso é maravilhosa, mas atrapalha a verdadeira discussão", disse Lula no fim da Cúpula da Governança Progressista, a antiga Terceira Via, que reuniu governantes de 14 países em um parque nas imediações de Pretória, capital da África do Sul. Antes, o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, havia defendido o consenso para os acordos do comércio "No meio de cem, um atrapalha a discussão", disse Lula. Entre os seis chefes de governo, entre eles Lula, que falaram no fim do encontro, se encontrava Tony Blair, a quem o presidente pedira apoio à iniciativa brasileira para tentar salvar a Rodada Doha. O primeiro-ministro destacou que "a União Européia trata esses assuntos em bloco" e disse que precisava discutir o tema com os outros parceiros europeus. Tanto Blair como os demais governantes manifestaram simpatia com a causa brasileira. "O sistema multilateral será enfraquecido", disse o sueco Goran Person, referindo-se ao eventual fracasso da Rodada Doha. "Não podemos depender apenas do comércio bilateral. É importante que ela seja bem sucedida. O fracasso da rodada seria horrível", reforçou Tony Blair. Mais tarde, Lula amenizou as declarações anteriores e disse que não havia proposto a quebra do consenso: "Estou propondo votar." A Rodada Doha entrou na pauta da Cúpula da Governança Progressista a pedido de Lula. Ele acredita que as negociações relacionadas aos subsídios agrícolas se esgotaram no nível dos ministros. Agora, só a intervenção dos dirigentes dos países, especialmente das economias industrializadas, resolveria o impasse e seria capaz de salvar a rodada. Isso seria discussão para o café da manhã entre os chefes de governo, mas o presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, não só incluiu o tema na pauta da reunião, como também convidou para a discussão o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, e o negociador da UE na OMC, Peter Mandelson. Antes do encontro, Lula conversou a sós, por 30 minutos, com Tony Blair. Nessa reunião, Blair deixou evidente que vai sondar os demais parceiros do G-8 (o grupo dos países mais ricos), mas só assumirá a liderança do movimento se sentir possibilidade de algum êxito. O chanceler Celso Amorim disse que o Brasil está disposto a dar aos países mais pobres, especialmente os africanos, acesso livre de tarifas e cotas e uma abertura comercial das áreas industrial e de serviços proporcional ao tamanho e à riqueza do país. Lula destacou que a UE emprega 4,8% da mão-de-obra no setor agrícola, enquanto no Brasil esse percentual é de 25% e de 70% em Camarões. Por outro lado, enquanto a tarifa máximo de importação brasileira é de 35%, na Europa há casos de 400% e até 1.000%, segundo Amorim. O ministro das Relações Exteriores disse que sentiu nas conversas com Lamy e Mandelson "um clima positivo, uma compreensão melhor do que é possível, do que é necessário". "Há uma certa flexibilidade para avançar", disse, apesar das ausências de Estados Unidos e do Japão, que não integram a cúpula. Segundo Lula, não se trata de discutir apenas os interesses da disputa comercial entre UE e EUA ou entre os países emergentes, os EUA e a UE. "O Brasil está disposto a cumprir a sua parte, fazendo concessões proporcionais ao tamanho e à riqueza do Brasil", disse. Um acordo "que a gente possa fazer levando em conta a necessidade de favorecimento dos países mais pobres do planeta". Lula disse que esse é um compromisso de sua geração e a de Tony Blair: "Não podemos perder a oportunidade de deixar que por mais 30 anos os países pobres continuem mais pobres", disse. Novamente, Lula acentuou que o terrorismo tem como uma de suas causas a pobreza. Lula e o governo brasileiro, no entanto, têm pouco tempo para a empreitada. Um acordo preliminar deveria ficar pronto até o fim de abril, quando serão fechados os modelos da Rodada Doha. Pelos cálculos de Amorim, a negociação com os países ricos deveria se dar entre março e o início de abril. Em maio, os países da UE e da América do Sul se reúnem em Viena. Em julho, o G-8 se encontra na Rússia. O mandato do negociador americano na OMC para acordar medidas sem ter de submetê-las ao Congresso dos EUA termina em março. Apesar do tempo escasso, Amorim aprova a ofensiva brasileira: "É preciso testar limites", disse, antes de embarcar de volta a Brasília. A Cúpula da Governança Progressista, nas proximidades de Pretória, foi o último compromisso de Lula na África, onde o presidente visitou quatro países, começando pela Argélia e passando pelo Benin e Botsuana. Em Benin, Lula visitou na sexta-feira uma comunidade de descendentes de escravos brasileiros que retornaram à África. Em Gaborone, capital de Botsuana, assinou acordo de cooperação na área esportiva - o Brasil vai ajudar a formar técnicos de futebol - e de assistência de combate à aids, que devasta cerca de um terço da população do país. Ao todo, Lula já visitou 17 países africanos, em três anos de mandato. Ele fez a promessa de que o Brasil nunca mais vai voltar as costas ao continente. Lula provocou um sorriso constrangido do presidente da Etiópia, Meles Zenawi, ao contar uma parábola enquanto falava sobre a política de consenso da OMC: uma comissão, ao ver um cavalo num quadro, um cavalo perfeito, feito por Deus, decidiu que poderia melhorá-lo. Quando a comissão acabou, viu que tinha feito um camelo. O presidente também pediu licença aos demais chefes de governo para se retirar da entrevista com os jornalistas, pois a chuva poderia impedi-lo de pegar o helicóptero que o levaria até o aeroporto. Mbek aproveitou para encerrar a coletiva de imprensa.