Título: Solução de mercado para os precatórios
Autor: Vladimir Alves
Fonte: Valor Econômico, 14/02/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"Não é razoável que a decisão de pagar os precatórios fique só nas mãos do Executivo. A melhor solução é formar um mercado eficiente para a absorção dos títulos."

A promulgação da Emenda Constitucional nº 30, de 13 de setembro de 2000, representou inegável avanço na gestão dos precatórios no Brasil. Já naquela época, o não-pagamento sistemático das dívidas judiciais pelas Fazendas estaduais e municipais constituía um problema complexo a desafiar a autoridade e a autonomia do Poder Judiciário e a afetar o desempenho global da atividade econômica. Além de transferir para os presidentes dos tribunais de Justiça a prerrogativa de determinar o pagamento de precatórios, antes atribuída ao Poder Executivo, a Emenda nº 30 deu sinais claros de que o legislador reconhecia, na existência de um potencial mercado de títulos, a solução daquilo que se convencionara a chamar "crise dos precatórios". Com a Emenda, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) passou a prever a cessão de créditos e a compensação tributária. Essas duas novas possibilidades passaram a representar os requisitos jurídicos para a formação de um mercado de títulos. O próprio parcelamento dos precatórios abriu uma nova alternativa para a negociação dos títulos no médio e longo prazo. Não obstante, por mais que tivesse o mérito de transferir para o mercado a gestão desses títulos, a Emenda Constitucional nº 30 o fez apenas em parte e de forma insuficiente para sanar a crise dos precatórios, que, com um volume estimado em R$ 100 bilhões, volta a pressionar os Executivos estaduais e municipais e a desafiar o estado democrático de direito. E, de novo, a solução apontada passa pelo mercado. Começa a ganhar corpo e forma no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), formulada originalmente na assessoria econômica do Supremo Tribunal Federal (STF) e apresentada pelo seu presidente, o ministro Nelson Jobim. A versão, considerada arrematada do ponto de vista técnico, encontra-se na mão presidente do Congresso, senador Renan Calheiros (PMDB), que aguarda impulso político de prefeitos e vereadores para transformar o texto em Proposta de Emenda à Constituição, isto é, a adesão de um terço dos membros do Senado. Nos termos da proposta, cria-se um sistema alternativo para o pagamento dos precatórios, que deverá conviver, em paralelo, com o regime ordinário disposto na Constituição Federal. Pelo regime alternativo, limita-se o montante orçamentário destinado a esses pagamentos em 3% da receita corrente líquida do exercício, elimina-se a distinção entre precatórios alimentares e não alimentares e institui-se a possibilidade de pagamentos à vista por meio de leilões de deságio em relação aos valores de face.

Para os credores, o principal benefício da medida será a liquidez que o mercado atribuirá aos títulos

Os créditos sujeitos ao leilão de deságio representarão, segundo a versão original do texto, os precatórios cobertos pelos 70% dos valores disponíveis para essa rubrica orçamentária. O critério da ordem crescente de valor, previsto na versão original do texto e aplicável aos outros precatórios não sujeitos ao leilão, privilegiará, naturalmente, os titulares do créditos alimentícios, que, em geral, possuem os menores valores de face. A existência de um sistema constitucional único, mesmo com as flexibilizações da Emenda nº 30, vem engessando o planejamento orçamentário, criando distorções e retirando dos entes federados a prerrogativa de ordenar, eles próprios, de forma isonômica, a gestão das dívidas decorrentes de sentenças judiciais. O regime alternativo, ao privilegiar com tamanha ênfase o mercado de títulos, enseja a formação de um sistema eficiente de representação desses direitos para que haja um desenvolvimento satisfatório desse mercado de títulos. Se não é viável política e financeiramente forçar o pagamento total e imediato dos precatórios, também não é razoável que a decisão de pagar ou não fique nas mãos apenas dos chefes dos Poderes Executivos. Assim, a melhor solução é a formação de um mercado eficiente para a absorção dos títulos. Na base da formação desse novo mercado está a noção de que o título é mercadoria, na medida em que deverá mobilizar empresas, corretoras de títulos e escritórios de advocacia nos processos de intermediação financeira. Para os credores, o principal benefício da medida é a liquidez que o mercado atribuirá aos títulos, mediante o deságio em relação ao valor de face. Para os devedores, a mercantilização dos precatórios deverá ser encarada como um fator de adequação dos valores de face aos valores de mercado, afastando as indenizações irreais. Nesse sentido, a medida, sob todos os aspectos, aperfeiçoa o sistema de pagamentos do Estado brasileiro e resgata a credibilidade há anos comprometida pela inadimplência sistemática.