Título: A OMC precisa de um Conselho de Segurança
Autor: Carlos Serapião Jr. e Demétrio Magnoli
Fonte: Valor Econômico, 15/02/2006, Opinião, p. A14

O embrião desse organismo já existe, mas permanece na informalidade

A proposta do presidente Lula de "democratizar" a Organização Mundial do Comércio (OMC), feita há pouco na África do Sul, vai na direção contrária do interesse brasileiro. Ao propor a regra da decisão por voto de maioria, no lugar do atual sistema do consenso, Lula revive um sonho antigo, que foi a tentativa de controle da ONU pela maioria dos países da Assembléia-Geral nos anos 60. O empreendimento praticamente não ultrapassou os limites da retórica e seu significado ganhou a síntese definitiva na frase irônica de um diplomata da época: "O Terceiro Mundo controlava o prédio da ONU em Nova York, enquanto o Primeiro Mundo, o resto do mundo". De fato, ao invés de priorizar a campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, pleito legítimo mas atualmente pouco realista, o Brasil deveria reorientar o foco para a reforma da OMC. Mas numa direção diferente da expressa por Lula. A idéia de estabelecer a regra do voto de maioria é, na verdade, uma radicalização do sistema existente, no qual as potências comerciais dependem de um consenso quase impossível. Tudo o que a proposta pode conseguir é oferecer um pretexto para os países desenvolvidos abandonarem o quadro da OMC. O interesse nacional pede o contrário: uma OMC eficaz, assentada sobre bases realistas. A OMC foi instituída, como sucessora do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), no tratado de encerramento da Rodada Uruguai, em 1994. O GATT surgiu em 1947 como organização quase informal, praticamente restrita a um conjunto de países industrializados que compartilhavam o interesse pelo multilateralismo comercial e pela redução do protecionismo no intercâmbio de manufaturas. Ele funcionava na base do consenso e seus acordos não dispunham de mecanismo efetivo de enforcement. A OMC, em contraste, é um produto da globalização. Ela tende a abranger todos países do mundo e incorpora um Mecanismo de Solução de Controvérsias que funciona como tribunal comercial. A OMC herdou do GATT a regra do consenso, a qual reflete o princípio da igualdade soberana entre os Estados. Os acordos multilaterais de comércio exigem consenso decisório e, como manifestação radical do princípio da igualdade, qualquer país ou grupo de países pode bloquear uma rodada de negociações por divergir de sua agenda ou de algum tópico específico. Esse traço distingue a OMC das outras instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), que funcionam como bancos públicos e, em suas estruturas de poder, exprimem por meio de cotas de capital o peso diferenciado dos Estados-membros. O fundamento clássico das relações internacionais é o princípio do poder, explicitado originalmente por Thomas Hobbes. Contudo, sob o impacto das idéias iluministas e das revoluções americana e francesa, o princípio da igualdade, explicitado por Immanuel Kant, impregnou o mundo dos Estados. As instituições internacionais criadas no século XX articulam, sob formas variadas, esses princípios contraditórios. A ONU evidencia essa tensão: o Conselho de Segurança corporifica o princípio hobbesiano; a Assembléia-Geral, o princípio kantiano. Eis aí o segredo que deu efetividade e possibilitou a sobrevivência da organização mundial de segurança coletiva em meio às tormentas da Guerra Fria e ao desequilíbrio gerado pela hegemonia estratégica dos EUA.

Um núcleo decisório na OMC teria a faculdade de estabelecer a agenda e o encaminhamento das negociações

Já a OMC rejeitou, em sua concepção, o princípio hobbesiano do poder. Nessa rejeição encontram-se as raízes de uma crise crônica que a paralisa e ameaça torná-la irrelevante. A cúpula ministerial de Cancún, em setembro de 2003, que quase implodiu a Rodada Doha, evidenciou a natureza do problema. Na ocasião, um grupo de países africanos insurgiu-se contra a agenda de negociações defendida pela União Européia, o que provocou o colapso da reunião. As frenéticas tentativas de resgatar a Rodada Doha do limbo em que se encontra esbarram na intransigência européia de oferecer concessões significativas no comércio agrícola. Mas tentar resolver o impasse na agricultura e em outros temas, como serviços e investimentos, mediante voto da maioria a fazer curvar a UE, os EUA e o Japão levaria a OMC a se afastar perigosamente da lógica hobbesiana do poder, isto é, da realidade, provocando seu esvaziamento. Destruir a OMC é o programa do movimento antiglobalização. Ironicamente esse programa pode ter a adesão dos países desenvolvidos, que cederiam à fácil tentação de firmar acordos Norte-Norte e retrocederiam para a esfera essencialmente hobbesiana do regionalismo comercial. Os maiores prejudicados por um fracasso do multilateralismo seriam os países em desenvolvimento, ou seja, a maioria. A eventual implosão da Rodada Doha e o enfraquecimento da OMC certamente não atendem ao interesse brasileiro. O Brasil, um global trader com pequena participação no mercado mundial mas detentor de potencial de liderança no agronegócio, precisa de regras multilaterais estáveis e só teria a perder com a consolidação de blocos comerciais fechados. A utopia de uma OMC puramente kantiana encontra-se no limiar do esgotamento. A reversão do processo pode até passar pela institucionalização do voto de maioria, na hora da conclusão dos acordos multilaterais. Mas, antes disso, depende de uma reforma que, injetando o princípio de poder na sucessora do GATT, propicie um quadro institucional mais equilibrado e eficaz. Em outras palavras: ao lado de uma Assembléia-Geral baseada no voto de maioria, a OMC precisa do seu Conselho de Segurança. O embrião desse organismo já existe, mas permanece na informalidade: EUA, UE, Japão, China, Índia e Brasil são os protagonistas do intenso esforço de bastidores para salvar da falência a Rodada Doha. Um núcleo decisório na OMC teria a faculdade de estabelecer a agenda e o método de encaminhamento das negociações, de modo que a prerrogativa de cancelar uma rodada ficaria restrita a seus integrantes. Países menores e com interesses muito limitados perderiam o poder legal de paralisar negociações de âmbito global, podendo, é claro, votar sobre seus interesses limitados na Assembléia Geral. Já as potências industriais e os grandes países emergentes, com seus interesses vitais melhor protegidos, teriam todos os incentivos para evitar a derrocada do sistema multilateral e universal de comércio. O Brasil não está no Conselho de Segurança da ONU porque a guerra e a paz no mundo não dependem de suas iniciativas. Mas o Brasil participa de praticamente todas as reuniões fechadas que preparam as cúpulas da OMC pois tem a agricultura mais produtiva e a maior fronteira agrícola do mundo, e sua diplomacia conseguiu articular os grandes países emergentes em torno de uma plataforma comum. É um desperdício não usar esse poder para reinventar a OMC em bases realistas.