Título: Para a Índia ultrapassar a China
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 15/02/2006, Opinião, p. A15

País está no limiar do crescimento acelerado, mas não o cruzará sem uma boa dose de ajuda

A campanha "Índia em todo o mundo" da Confederação da Indústria Indiana dominou totalmente o encontro anual de 2006 do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Se relações públicas fossem o caminho que conduz ao êxito econômico, a Índia seria mundialmente imbatível. De fato, os indianos estavam em toda parte, ao passo que os chineses mantiveram-se relativamente invisíveis. Tendo em vista que a previsão de crescimento econômico indiano é, atualmente, de 8,1% neste ano fiscal (que finda em 31 de março de 2006), a confiança está em alta. Entretanto, a confiança tem uma gêmea impiedosa: a complacência. É baixa a probabilidade de que a taxa de crescimento indiana esteja duradoura e decisivamente acima da média do quarto de século passado. Também está longe de ser uma certeza que a Índia terá maior êxito do que a China no aproveitamento de seu potencial. Muitas reformas são ainda necessárias. Quanto maior a complacência, maior é o risco de fazer demasiado pouco, devagar demais. Até agora, a China mantém-se na dianteira. Nos últimos 25 anos, o crescimento econômico chinês ficou em média pouco abaixo de 10% ao ano. Segundo Angus Maddison, um historiador econômico, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita chinês (em paridade de poder de compra) cresceu quase duas vezes mais rápido do que o da Índia. Veremos mudanças nesse desempenho relativo? E o que é mais importante, poderá ele mudar devido a um surto no crescimento da Índia? Shankar Acharya, ex-assessor econômico do governo indiano, argumenta convincentemente contra esse percepção, na introdução de um livro a ser publicado em breve. Ele sugere que o crescimento de médio prazo permanecerá provavelmente em torno de 6% ao ano ("Essays on Macroeconomic Policy e Growth in India", Oxford University Press, forthcoming). Isso é, sem dúvida, coerente com as tendências. Não apenas o crescimento da Índia ficou, em média, pouco abaixo de 6% durante os últimos 25 anos, como uma média móvel de cinco anos desviou-se extraordinariamente pouco desse nível. Embora o crescimento indiano tenha ultrapassado os 7% nos últimos três anos-calendários, isso aconteceu depois de três anos nos quais a média foi de apenas 4,7%. Grande parte do recente surto de crescimento foi mais cíclico do que estrutural. Por que, então, poderia um analista sensato prever um surto de crescimento na Índia? Há três amplas razões: primeiro, o perfil demográfico indiano é relativamente favorável; em segundo lugar, a Índia tem melhores instituições do que a China; em terceiro lugar, a Índia tem maior margem para aperfeiçoar suas políticas e o desempenho dos investimentos. Esses aspectos têm peso. Mas também descrevem possibilidades, e não desempenho efetivo. Segundo previsões da ONU, a taxa de dependência na Índia (a relação entre o número de pessoas acima da linha da idade economicamente ativa sobre o número de pessoas abaixo dessa linha) será de fato inferior à da China, mas somente em 2030. Além disso, os dois países ainda têm a oportunidade de melhorar a qualidade da força-de-trabalho e de tirar trabalhadores do setor agrícola. Infelizmente, a Índia foi ineficiente em particular na absorção de sua força de trabalho em emprego produtivo. Entre 1993-94 e 1999-2000, por exemplo, registrou-se um crescimento anual de 6,5% na economia e de apenas 1% no emprego. Tolhido por legislação trabalhista restritiva, o emprego na indústria de transformação permaneceu estagnado em cerca de 6 milhões, ou 1,5% da mão-de-obra. O tão alardeado setor de informática emprega apenas 1 milhão - uma gota no Oceano Índico. Mão-de-obra não utilizada não é uma vantagem, mas um ônus terrível.

Surto de crescimento poderia ocorrer porque a Índia tem boas instituições e boa margem para aperfeiçoar suas políticas e o desempenho dos investimentos

É, porém, verdade, que a Índia detém diversas vantagens institucionais sobre a China: setor privado bem desenvolvido; um sistema jurídico relativamente consolidado; democracia estável; e liberdade de expressão. Os indicadores de administração pública do Banco Mundial refletem algumas dessas vantagens, especialmente a pontuação enormemente superior em "representatividade e prestação de contas". Também atribui à Índia uma pontuação ligeiramente melhor em controle de corrupção e imposição da lei. Mas o banco atribui à Índia uma nota pior nos itens qualidade de agências fiscalizadoras e eficácia governamental. Sobre esta, pode haver pouca dúvida: a capacidade chinesa de mobilizar recursos continua muito maior do que a indiana, como comprovado em seu desempenho enormemente superior na disponibilização de infra-estrutura. Isso nos leva à terceira razão: a margem de possibilidade de melhoria em política econômica. A Índia tem grande chance de aumentar a taxa de investimentos, que permanece bem abaixo dos níveis chineses mesmo depois das recentes revisões no PIB chinês. A diferença nas taxas de investimento é causa imediata da diferença de crescimento das duas economias. Por trás do enorme diferencial de investimentos existem substanciais e persistentes deficiências na política econômica indiana. Enormes déficits fiscais são um exemplo. Ainda mais importantes têm sido os enraizados obstáculos - na legislação trabalhista, na reserva de mercado que privilegia o setor que opera em pequena escala e mesmo na política comercial - à rápida expansão de produção intensiva em mão-de-obra. Isso ajuda a explicar a maior discrepância entre os crescimentos chinês e indiano: o setor da indústria de transformação chinês cresceu perto de 12% ao ano entre 1990 e 2003 e o indiano cresceu apenas 6,5%, bem abaixo dos 7,9% obtidos pelo setor de serviços indiano. Esse padrão, sugere um esclarecedor documento de trabalho de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI), está vinculado a uma antiga predileção por um padrão de desenvolvimento econômico intensivo em capacitação profissional (Kalpana Kochhar e others, "India´s Pattern of Development: What Happened, What Follows?", January 2006, WP/06/22, www.imf.org). Até 1980, esse viés gerou um setor de manufatura relativamente pequeno e com emprego intensivo de capacitação técnica. A partir de então, esse mesmo viés produziu um setor de serviços excepcionalmente amplo, mas também intensivo em capacitação técnica. A participação do setor de serviços no emprego global ficou não menos que 17 pontos percentuais abaixo da registrada, em países comparáveis, em 2000, apesar de sua participação na produção ter sido 4 pontos percentuais superior. Essas duas tendências prevaleceram contra o emprego em massa - na medida em que oportunidades lucrativas estivessem asseguradas, contra o próprio crescimento. Isso deve mudar, para que a Índia possa desenvolver-se. A melhoria no desempenho da economia indiana no quarto de século passado é, a um só tempo, uma realidade e uma conquista. Mas poderia ser ainda melhor. Não melhorará, porém, sem substancial ampliação de reformas. Como ressalta Acharya, mudanças são necessárias em cinco áreas chaves: desregulamentação de mercados de trabalho e fim da reserva de mercado à produção pelo setor de pequena escala; revitalização de crescimento da agricultura; maior investimento em infra-estrutura; eliminação de déficits fiscais no orçamento atual; e, finalmente, privatização generalizada e maior liberalização de comércio. Sim, tudo isso irá se revelar difícil. Mas é também enormemente importante. A Índia está no limiar do crescimento acelerado, mas não o cruzará sem uma boa dose de ajuda.