Título: A volta aos europeus
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2004, Brasil, p. A-2

O comércio internacional tem razões que o senso comum ignora: a Itália, por exemplo, resiste a aceitar qualquer acordo comercial que não inclua o monopólio italiano para o uso da denominação geográfica "presunto de Parma"; mas negocia com o governo brasileiro um projeto bilateral de cooperação para transferência, a brasileiros, da tecnologia de fabricação do ... presunto de Parma. Essa aparente contradição é só um aperitivo para os variados interesses que se misturam e se manifestam em discussões como a negociação para o acordo de livre comércio entre União Européia e Mercosul. Discussões que devem sair do limbo na semana que vem, quando se reúnem negociadores dos dois blocos, no Rio de Janeiro, para ver como seguir em frente. A novela dessas negociações foi interrompida neste mês, quando, após novo impasse, deixaram a cena todos os protagonistas do lado europeu, com o fim do mandato da comissão que funciona como braço executivo da União Européia. O francês Pascal Lamy foi substituído pelo inglês Peter Mandelson como comissário de Comércio, chefe dos negociadores do lado de lá. A chegada de Mandelson também desencadeou uma coleção de análises baseadas no senso comum, que em nada ajudam a esclarecer ou orientar a futura estratégia brasileira. O experiente - e, até agora, bem- sucedido em sua política externa - embaixador Celso Amorim, quem sabe cansado de enfrentar críticas infundadas, também baseadas em análises rastaqüeras das relações internacionais, vem fazendo sua concessão ao senso comum, ao comentar o que representa a substituição de Lamy por Mandelson. Por ser inglês, do país mais liberal na União Européia, repete o ministro, Mandelson deve trazer um impulso liberalizante às conversas entre os dois blocos. Essa análise é, certamente, o que os diplomatas chamariam de obrigação de nobreza, uma declaração simpática mas pouco substantiva sobre a pessoa que Amorim encontrará, no primeiro trimestre do ano que vem, do outro lado da mesa de negociações. Tão simpática quanto pouco assentada na realidade. Analistas próximos ao governo britânico comentam que os defensores de posições mais liberais na Europa temem que a nacionalidade de Mandelson seja, na verdade, um obstáculo aos impulsos liberalizantes da Comissão Européia. Lamy, que já não tinha muita identidade com o governo do conservador e protecionista Jacques Chirac, por ser socialista, indispôs-se definitivamente com o Executivo francês por seu esforço em convencer os europeus a reduzirem seus subsídios e barreiras na agricultura. Foi acusado de extrapolar em seu mandato. E aí vem a característica do mecanismo negociador da União Européia que os aliados de Mandelson temem ver funcionar contra o novo comissário. Na União Européia, os comissários têm autonomia relativa, e negociam segundo um mandato conferido pelos representantes dos governos nacionais, reunidos em um Conselho de Ministros. Por ser francês, Lamy era recebido com certa complacência pelos governos protecionistas europeus, que davam aval para ações do comissário às vezes relatadas apenas de maneira genérica para os ministros a quem dava satisfações. Mandelson não deve ter a autonomia de que se aproveitou o francês.

Inglês deve dar impulso liberalizante às conversas

Um diplomata europeu lembra que, no ano passado, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancún, os italianos cobravam, insistentes, explicações sobre como andavam as discussões para incluir as denominações geográficas entre os temas da negociação. Lamy aplacou a ansiedade com uma garantia vaga de que o tema estava sendo tratado a contento. Mandelson, comenta o diplomata, provavelmente teria de fazer um relato pormenorizado dos compromissos assumidos com os outros países, nas negociações da OMC e em quaisquer outras. A todo momento, e especialmente quando tentar convencer o Conselho de Ministros a ceder e adotar posições mais liberalizantes, o inglês enfrentará a desconfiança dos interlocutores, receosos de que o novo comissário esteja tentando contrabandear, para a política européia, a liberalizante agenda nacional britânica. Não se pode condenar os demais europeus por suas desconfianças em relação ao eficiente Mandelson. Na Inglaterra, ele recebeu o apelido de "Príncipe das Trevas", por agir como um moderno Rasputin, exercendo uma influência espantosa no governo de Tony Blair, de quem é amigo próximo. Mandelson tem a fama de amealhar aliados nos locais mais insuspeitos, e de concretizar suas propostas sem fazer qualquer esforço visível. Outra característica de Mandelson lança mais sombras no futuro do acordo UE-Mercosul: ele dá franca preferência aos arranjos comerciais multilaterais, no figurino da OMC, em relação às negociações regionais, como o que se tenta ressuscitar a partir da semana que vem. É evidente a necessidade de insistir em um acordo de livre comércio com a União Européia - agora ampliada por dez países do antigo Leste Europeu, em muitos aspectos concorrentes do Brasil no Velho Continente. O bloco europeu é o maior mercado no mundo para o Brasil, e um dos principais responsáveis pelos recordes de comércio alcançados mês a mês em 2004. A União Européia absorve pouco menos de 25%, um quarto das vendas brasileiras ao exterior, e comprou, entre janeiro e setembro, 35% a mais que no mesmo período do ano passado. Em números absolutos, foram US$ 4,2 bilhões a mais em compras, desempenho superior ao crescimento de vendas para o Mercosul e o dobro do aumento das exportações para os Estados Unidos, segundo maior mercado para produtos brasileiros. Já não era fácil negociar com os europeus. Agora, mesmo que reúna toda a boa vontade britânica na mesa de negociações, Mandelson terá de se defrontar com uma equipe negociadora do Mercosul extremamente bem preparada para dar respostas aceitáveis aos obstáculos que surgirão na Europa, no caminho do acordo de livre comércio que o presidente Lula garante ser uma prioridade estratégica.