Título: Das diferenças entre a política e o boxe
Autor: Maria Inês Nassif
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2006, Política, p. A10

O que diferencia a política de uma luta de boxe é a opinião pública. No boxe, existem dois contendores e um deles ganha porque bate no adversário até nocauteá-lo. É soco contra soco. Na política, entre adversários existe o eleitor e é dele o nocaute. Derrotar ou ser derrotado pelo adversário tem a mediação obrigatória do voto. Talvez tenha faltado à oposição ao governo Luiz Inácio Lula da Silva a percepção de que, como é o eleitor que nocauteia, a estratégia política deve prever, com fina sensibilidade, quando é necessário bater e, principalmente, quando é preciso pendurar as luvas. E talvez seja isso que o bloco oposicionista tenha a e aprender com a pesquisa CNT-Sensus, que previu uma vitória ampla de Lula sobre o candidato com mais chances de enfrentá-lo, o tucano José Serra. Quando a oposição, diante do resultado, discute com números como se estivesse combatendo o adversário político - o PSDB pediu auditoria na pesquisa - dá a impressão de que pretende derrubar um retrato da realidade no grito. Isso não faz jus à sua inteligência. A CNT-Sensus registra, com números mais espetaculares, a dinâmica da popularidade de Lula. Abstraídos os números, o perfil do adversário já estava registrado nos levantamentos anteriores, inclusive naqueles que foram feitos no ano passado, em meio ao turbilhão político do mensalão. Eles já davam muitos recados que, se observados pelos adversários do presidente, poderiam ter monitorado com alguma ciência a estratégia política deles e apontado o momento de reduzir a agressividade. Em um determinado momento da luta de boxe política do ano passado, a ofensiva oposicionista passou a ter o efeito contrário ao esperado, isto é, em vez de aumentar o desgaste do governo e de Lula, aumentou a aceitação de ambos. Pelos números, inclusive os disponíveis internamente por um partido de oposição, em abril passado, quando a crise política apenas se iniciava, Lula já tinha uma imagem consolidada nas regiões mais pobres e entre a população de baixa renda. Era visível que as eleições de outubro teriam um corte social que nenhuma teve até agora, no período recente de democracia. Já havia um descolamento claro entre a opinião do rico e a do pobre em relação ao governo. O presidente tinha aprovação de cerca de 70% nas classes D e E e quase 60% na classe C, enquanto a sua aprovação nas classes A e B estava em declínio - isso, segundo uma das pesquisas. No mesmo mês, teve a aprovação de quase 70% dos nordestinos. Era reconhecido como o presidente identificado com o povo e aquele que entende o problema do pobre. Este corte social, que já era um dado, refletiu-se também na avaliação de Lula como administrador. Para as classes mais baixas, ele era aquele que tinha preparo, experiência e autoridade. As área mais reconhecida pelo bom desempenho do governo era a social: os programas de compensação de renda já tinham vertido em popularidade para o governo e para o seu titular, e eram reconhecidos por classes tradicionalmente influenciáveis pelos formadores de opinião. Tudo indicava, naquele momento, que o voto do mais pobre - e esse país é muito pobre - tenderia a se expressar, em 2006, sem mediações. Havia se estabelecido uma ligação quase direta entre o presidente e a população de baixa renda.

Bater nem sempre é a melhor estratégia

Em agosto foi o inferno para Lula. Apenas naquele mês a corrupção pegou no seu calcanhar - ainda assim, quase metade da população o considerava honesto. A imagem do presidente, até então incólume, praticamente colou à do PT, que vinha sofrendo todo o desgaste. Em setembro, no entanto, a popularidade de Lula deixou de cair. Em dezembro, estava em recuperação. E a pesquisa do Ibope coletada em janeiro mostra Lula voltando à posição de antes nas classes e regiões mais baixas. O corte social é claro na pesquisa do Ibope divulgada em fevereiro. Disputando com Geraldo Alckmin ou José Serra, ambos tucanos, e outros candidatos menos cotados, Lula tem ampla maioria no Nordeste e maioria confortável no Norte/Centro Oeste; e nada de braçada na população de baixa renda e baixa escolaridade. Os tucanos, ao contrário, têm mais aceitação nas regiões Sudeste e Sul, mais ricas; e na população que ganha mais de dez salários e de maior escolaridade. Com Serra na disputa, a diferença entre tucano e petista nessas áreas se reduz. É um quadro muito diferente do anterior às eleições que fizeram Lula presidente. A última pesquisa Datafolha antes das eleições de 2002 mostra um quadro invertido: Lula tinha maior penetração na região Sul; Serra e Ciro Gomes no Nordeste; maior apoio nas faixas de maior escolaridade e maior renda; e maior penetração nas classes médias. A moral da história é a de que Lula, em três anos de governo, ampliou sua popularidade nas classes de menor renda e escolaridade, perdeu na classe média e perdeu feio nas classes de maior renda e escolaridade. Para um partido oposicionista, essa constatação seria mais útil do que brigar com números. É fato que os programas sociais do governo tiveram efeito e estabeleceram quase uma ligação direta do presidente com as classes mais pobres - e isso pode relativizar o papel das lideranças locais e regionais como mediadoras de voto das classes de menor renda. Procede também a observação de que o descolamento das intenções de voto por faixas de renda e escolaridade pode indicar de que os chamados formadores de opinião terão papel relativo na definição do futuro presidente. E também é de se observar que os sucessivos escândalos de corrupção, se em algum momento colaram na figura de Lula, não foram suficientes para eliminar a identificação que a população tem com ele. Lula, o presidente de origem operária que ascendeu ao mais alto cargo da nação, é visto pelo povo como um deles. Na momento seguinte à maior ofensiva da oposição contra o presidente Lula, ele recompunha a sua imagem. É de se supor, portanto, que teve um momento ótimo para parar de bater no presidente que a oposição não percebeu qual era. E também que o centro do debate eleitoral deslocou-se da corrupção para alguma coisa que a oposição também não percebeu qual é.