Título: Febre de acumular reservas
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2006, Opinião, p. A13

Desde o início dos anos 90, os chamados países "emergentes", seguindo os passos dos japoneses em décadas anteriores, têm se lançado em um processo agressivo de acumulação de reservas internacionais. O movimento tornou-se mais intenso com a abertura generalizada dos países ao comércio internacional e ao fluxo financeiro. O capital, já se disse antes, tornou-se no mundo globalizado fator de produção abundante, contrariando a realidade que deu base aos ensinamentos de Karl Marx. Nada mais natural, como desdobramento, que o dólar, a moeda mais envolvida naqueles fluxos, tenha se transformado em uma "commodity" largamente disponível no mercado internacional. Essa "fartura" ajuda a explicar a queda do preço da moeda americana face à maior parte das demais moedas, em especial onde se pratica a flutuação cambial. O princípio é simples e está na raiz da teoria econômica: quanto maior é a oferta, mais baixo é o preço da mercadoria. Da onde vem tanto dólar? Ele nasce, obviamente, nas emissões primárias do Fed, o Banco Central dos Estados Unidos, mas circula mundo afora em sintonia com a demanda que tende a se manter firme enquanto não precisar disputar espaço no sistema internacional com uma outra moeda forte. O euro ainda não conseguiu garantir liquidez e nem credibilidade suficientes para desbancar o dólar em fatia expressiva dos movimentos comerciais e financeiros. Resumo desta opereta: os países em geral - e os emergentes em particular, aqueles que, via de regra, não dispõem de moedas conversíveis no mercado externo - passaram a "comprar" dólares através de seus bancos centrais para evitar ou tentar amenizar o processo de valorização de suas próprias moedas frente à moeda americana. Com isso, incham o estoque de suas reservas internacionais. Esse comportamento é generalizado. Nos últimos 30 anos ou pouco mais, as reservas internacionais dos países em desenvolvimento acusaram massivo aumento. Pularam do nível de 6% a 8% do PIB, em média, nas décadas de 70 e 80, para algo em torno de 30% do PIB em 2004. Os dados constam do levantamento feito pelo economista Dani Rodrik, da Harvard University, e publicado em janeiro deste ano pelo NBER sob o título: "The Social Cost of Foreign Exchange Reserves" ("O Custo Social das Reservas Internacionais"). Rodrik chama atenção para o fato de que não há registro de nada parecido nas estatísticas do estoque de reservas dos países industrializados, que têm se mantido, em média, em torno do equivalente a 5% do PIB desde os anos 50.

A política de acúmulo de reservas praticada pelos "emergentes" implica perda de renda equivalente a 1% do PIB, em média

Mais ainda, ressalta que a tendência ao acúmulo de reservas dos países em desenvolvimento se observa independentemente de se incluir a China no levantamento. Com ou sem ela, as reservas internacionais desse grupo de países cresce continuadamente desde o início dos anos 90, a ponto do volume hoje ser suficiente para cobrir em média um período recorde de oito meses de importações, quando a relação média das reservas internacionais dos países em desenvolvimento costumava variar em torno de três a quatro meses de importações nas décadas anteriores aos anos 90. De novo, esses dados suplantam muito as informações referentes aos países industrializados, onde a razão reservas/ importações tem se mantido estável, com cobertura para menos de três meses. Acumular reservas é sempre visto pelos governos dos países mais vulneráveis como um colchão de segurança contra crises externas. Isso é, grosso modo, verdade, muito embora não possa funcionar como garantia absoluta, haja vista a dramática situação vivida pelo Brasil no período entre o último trimestre de 1998 e janeiro de 1999. E aqui vale a pena mencionar outra tendência que tem envolvido muitos países em desenvolvimento e que Rodrik chega a classificar "como um comportamento de difícil conciliação com a racionalidade": a forte inclinação para contrair dívidas de curto prazo (até um ano). O economista acredita que, a despeito da característica de "proteção" inerente ao aumento das reservas, a principal motivação dos países "emergentes" nos últimos anos tem sido mesmo a de evitar a apreciação de suas moedas face ao dólar. A questão que Rodrik levanta é que isso não se dá sem custos para a sociedade. No caso do processo de acúmulo de reservas, o custo social pode ser medido de várias formas. Uma delas - a mais gritante, aliás, em países que enfrentam crescente endividamento público interno a juros elevados, como é o caso do Brasil - é a diferença existente entre a remuneração que os bancos centrais obtêm ao aplicar as divisas das reservas em ativos financeiros (recebem por isso os juros pagos por esses ativos que são, via de regra, títulos de emissão de países industrializados denominados em dólar ou outra moeda forte como o euro e o iene, além das aplicações em ouro) e os juros que o governo tem de pagar sobre os papéis da dívida pública, emitida internamente para "enxugar" a liquidez da moeda local emitida como contrapartida na aquisição dos dólares destinados a engrossar as reservas internacionais. No caso do Brasil, aquela diferença chega a 11% ou 12%, se imaginarmos uma dívida interna de R$ 100 contraída na compra de US$ 50 (câmbio de R$ 2 por dólar). Supondo que o custo dessa dívida equivalha a juros de 17% ao ano (R$ 17) e se imaginarmos remuneração de 5% sobre a aplicação das reservas de US$ 50 no exterior (US$ 2,50 ou R$ 5), conclui-se que há um buraco imenso a pesar sobre os ombros da sociedade sempre que o Banco Central compra dólares no mercado interno para brecar a apreciação do real. Rodrik prefere comparar a remuneração das reservas com o custo de contrair dívida no mercado internacional. Essa diferença, note-se, é substancialmente menor para países de alto endividamento interno, como o Brasil, tendo em vista o nível dos juros praticado comparativamente no exterior. Assim, considerando apenas a diferença entre os juros pagos pelo tomador de empréstimo externo e a remuneração recebida pelo BC sobre os ativos externos, Rodrik concluiu que a política de acúmulo de reservas praticada pelos "emergentes" implica em perda de renda equivalente a 1% do PIB, em média. Este é o custo social medido por Rodrik, mas os custos podem ser maiores, dependendo do caso.