Título: A política da UE pós-Hong Kong
Autor: Peter Mandelson
Fonte: Valor Econômico, 17/02/2006, Opinião, p. A15

Como comissário de Comércio da União Européia (UE) quero ser otimista. Porém, isso nem sempre é fácil. As negociações da Agenda Doha para o Desenvolvimento da Organização Mundial do Comércio (OMC) têm sido lentas, e em especial a reunião ministerial de Hong Kong, em dezembro, foi decepcionante. Porém, quero ser otimista, porque a economia mundial promete em 2006 um ano de esperança e de crescimento tanto para países como o Brasil como para a UE. Entretanto, o panorama tem seu lado obscuro: a pobreza expande-se mundialmente; há fortes desafios em temas como a inclusão e a coesão social. Neste contexto, a Rodada Doha demanda tempo e esforço. Cumprirá sua promessa de ser uma rodada em prol do desenvolvimento? Ainda é possível alcançar um resultado ambicioso ou devemos nos contentar com algo mais modesto e mais fácil de se alcançar? A OMC conseguirá benefícios para todos? Uma afirmação bastante duvidosa é a de que, para sair do impasse e concluir a rodada de maneira proveitosa para o desenvolvimento, basta que a UE amplie a oferta de acesso ao mercado agrícola. Grande parte dos países membros da OMC dizem que os países ricos - incluída a UE - não oferecem concessões suficientes. Não importa que a reforma das subvenções da Política Agrícola Comum da UE (a PAC) supere qualquer outra no mundo desenvolvido, nem que a UE seja o maior importador mundial de produtos alimentícios; muito menos que as exportações de vários países para a UE tenham aumentado fortemente nos últimos dez anos, ou ainda que nosso déficit comercial com um único país como o Brasil tenha superado alguns bilhões de euros em 2005. Esses membros da OMC afirmam que o que temos oferecido desde outubro não é suficiente para justificar redução real e significativa das medidas protecionistas em seus setores agropecuário, industrial ou de serviços. Respondem ainda que nossa oferta apenas justificaria que eles renunciassem a fixar tarifas mais elevadas no futuro. No linguajar corrente da OMC, isso equivaleria a "blindar o acesso ao mercado atual". Ou seja, em troca da concessão de acesso real adicional a nossos mercados, esses países não nos oferecem nenhum novo acesso aos seus mercados. Em nossa opinião, só poderemos sair do estágio atual de estagnação da negociação comercial multilateral se for reconhecido o valor da oferta européia em agricultura e se formos mais ambiciosos em todos os temas da rodada. Na agricultura, a UE colocou sobre a mesa ofertas com concessões reais. Assim, já aceitamos eliminar completamente, em 100%, nossos tão criticados subsídios à exportação, com o qual muitos de nossos produtos agropecuários seriam alijados dos mercados internacionais. Propusemos ainda a redução em 70% de outras formas de subvenções regionais que distorcem o comércio, o que afetaria negativamente a produção européia. As reduções tarifárias que propusemos aumentariam as exportações de outros países para a UE. Aceitamos que esses cortes se baseassem na fórmula sugerida pelo G-20, grupo integrado, entre outros países, pelo Brasil: "para uma tarifa mais elevada, um corte maior". Assim, os cortes tarifários serão de 60% para as tarifas mais elevadas. No tocante aos produtos sensíveis, que serão limitados a 8% de nossas linhas tarifárias, estamos dispostos a aceitar cortes tarifários próximos da metade daqueles que se aplicam aos demais produtos e a incluir novos contingentes que possibilitem um maior acesso ao mercado. Ou seja, os produtos sensíveis não estariam excluídos dos cortes propostos pela UE. Nossa oferta se aplica às tarifas atuais e futuras e não apenas aos limites tarifários anteriores. Em nossa tarifa não existe "água" (diferença entre a tarifa máxima autorizada pela OMC e a tarifa aplicada). Temos apresentado propostas igualmente generosas em outros setores da indústria e dos serviços. Para uma rodada frutífera, a UE não terá limites tarifários superiores a 15% em todo o setor industrial e, possivelmente, nenhuma tarifa superará os 10%.

Não podemos aceitar uma Rodada Doha que se conclua sobre a base de cortes reais para a Europa e cortes apenas no papel para os demais

Estas propostas têm um preço político real para a UE. Adotadas em conjunto no ciclo atual da reforma, elas repercutirão consideravelmente no trabalho e na vida de nossa população. A agricultura européia - cereais, aves de corte, gado etc. - se contrairá e haverá uma perda significativa de emprego. Para nós o custo será elevado. Por isso, vejo-me obrigado a repetir aos nossos sócios da OMC que não podemos aceitar uma Rodada Doha que se conclua sobre a base de "cortes reais para a Europa e cortes apenas no papel para os demais". De modo algum podemos aceitar cheques deferidos que se baseiam só na promessa dos EUA de que o seu Congresso reduzirá as subvenções nacionais e as ajudas à exportação agrícola sem se comprometerem a especificar as quantidades e a data em que farão isso. Da mesma forma não podemos aceitar meras promessas em relação aos monopólios de exportação da Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Não vamos propor novas mudanças em nossa agricultura se não vemos um compromisso real desses países de abrir seus mercados. Gostaria de deixar claro que a Rodada Doha não está bloqueada pela UE e sim pelos países que não apresentaram ofertas em serviços e bens industriais que correspondam a nossa ofertas em todos os setores em jogo. Não se pode pretender solicitar abertura nos mercados agrícolas se nos oferecem praticamente nada em bens industriais e serviços. A UE mantém seu compromisso de avançar tão longe quanto possível, inclusive em agricultura, sempre e quando houver um esforço compatível das demais partes envolvidas, levando-se em conta, entretanto, as diferenças de desenvolvimento entre os países. Se a Rodada Doha pretende alcançar seus objetivos no prazo previsto, teremos que assistir a um avanço semelhante, tanto em serviços, como nas novas normas que regulam produtos com indicações geográficas, no antidumping, nos bens industriais ou na agricultura. O Brasil tem um papel importante nessas negociações. Apesar de tudo, em minha opinião é possível alcançar um resultado ambicioso nas negociações da Agenda Doha para o Desenvolvimento. Porém, isso só será possível se todos reconhecermos isso acontecerá não apenas com mudanças na política agrícola européia, mas com a contribuição de todos os países com interesse e capacidade de contribuir. Como vamos chegar a um compromisso multilateral que reavive as negociações da OMC em direção a um resultado ambicioso, como aquele a que aspira a UE? Países como o Brasil podem ajudar muito as negociações da Rodada Doha. Como país com ambição de reduzir sua dependência do setor agropecuário e de ter um setor industrial forte e exportar esses produtos, o Brasil não só tem interesse em mercados agrícolas mais ampliados. Tem, também, forte interesse na abertura de mercado para exportações industriais e de seu dinâmico setor de serviços. O Brasil tem muito a ganhar com um resultado ambicioso da Rodada Doha que inclua todos os temas que estão sobre a mesa de negociação e que fortaleça o sistema multilateral. Em Hong Kong, fixamos um novo prazo das negociações para o mês de abril. Distantes dos holofotes das reuniões solenes, temos muito a fazer até lá. Podemos fazê-lo se assim o desejarmos. E nós o queremos. A pergunta que hoje não posso responder é: "Alguém mais está disposto?"