Título: Infância no NE influenciou vida acadêmica e política
Autor: Francisco Góes e Vera Saavedra Durão
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2004, Especial, p. A-14
Celso Monteiro Furtado nasceu em 1920 em Pombal, no interior da Paraíba. Filho de um juiz e descendente de proprietários de terras, ele vivia numa família abastada para os padrões locais, mas sua infância foi marcada pelas histórias de violência e miséria que ouviu. Num artigo escrito décadas depois, Furtado descreveu a região em que nasceu como um mundo dominado por "atos de arbitrariedade, prepotência e crueldade". Ele saiu cedo de lá. Estudou na capital do Estado, João Pessoa, e antes de completar vinte anos mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito na antiga Universidade do Brasil, origem do que atualmente é a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pouco depois de concluir o curso, Furtado foi convocado para integrar a força militar enviada à Itália para apoiar os aliados na Segunda Guerra Mundial. Ele passou menos de oito meses na Itália. Serviu como oficial de ligação com o exército americano e voltou ao Brasil após sofrer um acidente semanas antes do fim da guerra. O fim do conflito abriu novas perspectivas. Furtado tinha emprego certo no serviço público federal, onde entrara por concurso quando estava na faculdade, mas preferiu estudar em Paris. Foi atraído por um economista francês chamado Maurice Byé. Fugitivo do nazismo que se estabeleceu no Brasil durante a guerra, Byé conheceu Furtado nos anos 40 e convenceu-o a ir com ele para Paris. Furtado viveu quase dois anos na Europa, estudando economia na Universidade de Paris e na Escola de Economia de Londres. Sua tese de doutorado, sobre a economia colonial brasileira e com orientação de Byé, foi apresentada em 1948 na Sorbonne. Furtado voltou em seguida ao Brasil e foi trabalhar na Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio. Lá conheceu o austríaco Richard Lewinsohn, que vivia há muitos anos no Brasil e dirigia a revista "Conjuntura Econômica". Lewinsohn ensinou-lhe a importância de trabalhar com estatísticas e Furtado sempre atribuiu a ele um papel relevante na sua formação profissional, até então marcada pelos estudos teóricos em Paris. A etapa decisiva de sua formação teve início depois. Em 1949, Furtado mudou-se para o Chile para trabalhar na recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU). Ao lado do argentino Raúl Presbisch, que dirigia a Cepal, Furtado lançou as bases de uma nova escola de pensamento econômico, que por muito tempo exerceu grande influência na região. Conhecida como "estruturalista", essa escola propôs novas maneiras de explicar o desenvolvimento econômico de países periféricos como o Brasil e seu atraso em relação aos mais ricos. A nova escola desenhou políticas específicas para ajudar os países da região a sair do atraso, baseadas em técnicas de planejamento e intervenção governamental na economia. Ao longo da década de 50, Furtado trabalhou com Presbisch na formulação dessas idéias e viajou o mundo para difundi-las. Ele ficou quase um ano nos Estados Unidos acompanhando o debate econômico no meio acadêmico, passou outro ano estudando e dando aulas na Inglaterra e viveu meses no México, onde dirigiu um estudo da Cepal sobre o país. Os primeiros trabalhos de Furtado que alcançaram repercussão foram escritos nessa época. Foi nesse período que ele começou a intervir no debate econômico no Brasil, buscando aliados no meio empresarial e dirigindo um grupo de estudos que pôs funcionários da Cepal e do recém-criado Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) para trabalhar juntos numa ampla radiografia da economia brasileira. As reflexões desse grupo orientaram o arrojado Plano de Metas lançado pelo presidente Juscelino Kubitschek após sua posse. Mas as sugestões mais intervencionistas de Furtado foram deixadas de lado para que o plano também absorvesse as contribuições do economista Roberto Campos, que via as idéias dos estruturalistas com ceticismo e foi levado por JK à presidência do BNDE. A essa altura Furtado já era uma figura destacada no cenário nacional. Em 1958, ele voltou ao Brasil a convite de JK para dirigir um grupo encarregado de sugerir políticas para o desenvolvimento do Nordeste. Era uma oportunidade imperdível para Furtado, que viu ali a chance de aplicar suas idéias no ataque aos problemas sociais brasileiros justamente no lugar em que eles pareciam mais agudos, a região em que nascera. Após meses de discussões, o economista convenceu o governo a lançar um plano ambicioso para o Nordeste, com investimentos públicos e incentivos fiscais para atrair empresas para a região. Para conduzir o plano, Furtado propôs a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), órgão vinculado diretamente à Presidência da República. Foi difícil. Políticos habituados a controlar a distribuição de verbas na região encaravam com desconfiança a liderança de Furtado. A lei que criou a Sudene levou sete meses para ser sancionada. A atuação de Furtado no governo chamou a atenção para o Nordeste, mobilizou a opinião pública em torno dos seus problemas e atraiu o interesse dos Estados Unidos. Havia tanta apreensão com a temperatura política na região que os EUA ofereceram ajuda a Furtado e acertaram um pacote de US$ 131 milhões para a Sudene. Com o tempo, a determinação de Furtado prevaleceu sobre os interesses dos críticos da Sudene. Ele acumulou força política suficiente para manter-se à frente do órgão mesmo depois da substituição de JK por Jânio Quadros. Com a renúncia de Jânio e a crise política que levou à adoção do sistema parlamentarista, o economista deixou o posto para assumir uma missão que se revelaria ainda mais espinhosa que a Sudene. Furtado tomou posse como ministro do Planejamento em setembro de 1962. Menos de três meses depois, apresentou um plano de reformas para conter a inflação e arrumar a economia em três anos. O plano incluía um forte aperto fiscal, com novos impostos e cortes nas despesas do governo, previa uma reforma bancária e criava estímulos para as exportações. Foi um fiasco. As reformas ficaram no papel. Furtado e o ministro da Fazenda da época, San Tiago Dantas, não conseguiram resistir às pressões por aumentos salariais dos funcionários públicos. O arrocho fiscal produziu efeitos recessivos na economia e a inflação continuou fora do controle. Em poucos meses o plano perdeu credibilidade e o presidente João Goulart tirou de Furtado e Dantas o comando da economia.