Título: MP mira no efeito catalisador da entrada de capital externo
Autor: André Lunardelli
Fonte: Valor Econômico, 20/02/2006, Opinião, p. A8

Resta saber se aposta do BC para alavancar mercado de títulos longos foi leviana

Saiu na quinta feira a medida provisória desonerando o investimento estrangeiro em títulos públicos, visando o alongamento do perfil da dívida interna e a redução dos juros, especialmente no que diz respeito aos encargos da dívida pública interna. As premissas básicas do governo são a de que a medida é importante para atingir estes objetivos e de que ela não gerará grandes efeitos colaterais - leia-se, uma grande apreciação cambial. A previsão do secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, é de que a medida gere uma entrada adicional de divisas em torno de US$ 4 bilhões até o fim do ano. Como a soma deste montante com o estoque de títulos públicos internos detidos por estrangeiros - cerca de US$ 5 bilhões - representa um percentual baixo do estoque total da nossa dívida mobiliária, o governo espera que a renúncia fiscal seja muito menor do que o ganho com a queda dos juros (a medida não isenta investimentos efetuados antes de sua edição, mas o investidor que se enquadre na nova MP pode sair e em seguida voltar ao Brasil). O principal mecanismo para evitar uma "enxurrada adicional de dólares" reside no fato de a MP não beneficiar investidor de "país que não tribute a renda ou que a tribute à alíquota máxima inferior a vinte por cento". Ela exclui, portanto, investidores sediados em paraísos fiscais. A medida provisória também não representa benefício algum para investidores domiciliados em países com os quais o Brasil tem acordos de não bi-tributação, que constituem grande parte dos países relevantes (como Estados Unidos, Japão e China), pois nestes casos a renúncia fiscal brasileira será capturada pelo governo do país de origem do investidor. Ela vai atrair, no entanto, investidores de países que não se enquadram nestes casos, como a Alemanha e a Suíça. Com estas regras, não haverá nenhum investidor estrangeiro pagando menos imposto de renda do que paga um investidor brasileiro - a menor alíquota que um estrangeiro poderá pagar, incluindo as tributações que sofre aqui e lá fora, deverá ser de 15%, que é o correspondente ao que se pagava para o Brasil antes da MP em questão. Um brasileiro que faz uma aplicação em renda fixa com prazo acima de 2 anos, por sua vez, tem também alíquota de 15%. Se ele fizer a aplicação através de um PGBL com prazo de 10 anos, chega até mesmo a atingir uma alíquota de 10%. Assim, o que se busca é atrair certo volume de capital estrangeiro para alavancar o mercado de títulos longos da dívida pública interna e reduzir seus juros, mas sem que este volume seja muito grande. Este capital teria um papel de mero catalisador - e catalisadores compreendem uma parcela pequena do volume total do material de uma reação química.

Dadas as condições atuais do mercado cambial, os estrangeiros já têm razões suficientes para comprar títulos de maior prazo

Vale observar que é falacioso o raciocínio, aparentemente não incorrido pelo governo, de que um aumento no volume de capital estrangeiro propiciaria uma elevação na taxa de crescimento sustentável do nosso país. A materialização do uso destes recursos só se daria através de um aumento das importações propiciado por uma queda na taxa de câmbio, gerando, portanto, um efeito líquido negativo sobre os investimentos nos setores de bens comercializáveis (indústria, agricultura e extrativismo). Num contexto de excesso de divisas, como o atual, a conseqüência final principal seria simplesmente mais dívida externa para o país, o que implicaria oscilações mais dramáticas na nossa taxa de câmbio ao longo do tempo (câmbio mais apreciado agora e mais depreciado a médio e longo prazo). O fato de que o BC deseja o investidor estrangeiro apenas como catalisador se revela também na lógica de um detalhe aparentemente contraditório da MP: a isenção vale para títulos públicos de qualquer prazo. Isto revela que, mais do que desejar que o capital estrangeiro invista em títulos de longo prazo, o que o BC mais quer é que este mostre ao investidor brasileiro que prefere o título longo relativamente ao curto! Os dois desdobramentos mais almejados através do desenvolvimento do mercado de juros longos são a queda nos encargos da dívida pública e uma queda nos juros de longo prazo. Vale analisar estes dois pontos. Um primeiro efeito deriva do fato de que, como nossa curva de "yield" do mercado de renda fixa tem inclinação negativa, os gastos correntes do governo com juros são mais baixos com títulos longos do que com títulos curtos. Assim, quanto maior for a parcela de títulos longos (e, mais ainda, se os juros destes caírem rapidamente em função de um eventual sucesso da estratégia), menores serão os gastos correntes com juros. Com relação à possibilidade de queda dos juros brasileiros de longo prazo, estes são função da trajetória esperada das taxas de juros de curto prazo e do grau de incerteza deste mercado. Como a MP tende a reduzir esta incerteza, ela tende a favorecer a queda dos juros longos. A avaliação da extensão do potencial desta queda depende da análise que fazemos da trajetória das taxas curtas. Esta é uma questão difícil de se avaliar, mas alguns fatores indicam que elas podem cair bastante até que se configure uma mudança de patamar. Um destes fatores é, como apontou Paulo Tenani em recente artigo neste jornal, o "yield" corrente da nossa dívida externa soberana, indicando que os juros internos podem cair muito sem que se gere um movimento especulativo contra o real. Mas a definição da Selic tem de se pautar no cumprimento das metas inflacionárias, de modo que ela deve levar em conta também outros fatores que influenciam a taxa de inflação. Entre eles, poderíamos destacar a inflação passada, o ritmo da expansão do crédito e o próprio fato de a Selic estar atualmente caindo. Isto implica que quando a inflação atingir sua meta de longo prazo, o crédito parar de se expandir a taxas acima da "natural" e a Selic parar de cair, o nível de equilíbrio desta pode ser significativamente mais baixo. Mas isto é só mais uma aposta. No entanto, a questão que realmente se coloca é a da validade da primeira premissa levantada no início deste artigo: de se esta isenção é necessária para desenvolver o mercado de títulos longos do governo. Dadas as condições atuais do mercado cambial, se o apetite dos estrangeiros já é suficiente para isto, por que estimulá-lo ainda mais?