Título: A alteração da legislação cambial
Autor: Sérgio Werlang
Fonte: Valor Econômico, 20/02/2006, Opinião, p. A9

O projeto de lei complementar 32/2006, que está sendo apreciado no Senado, cuida de simplificar a legislação cambial. A legislação cambial brasileira é herança de um passado em que a taxa de câmbio era fixa. Quando as transações cambiais são livres, a taxa de câmbio só pode ser fixa se houver reservas internacionais em volume suficiente para suprir a diferença que possa existir entre a demanda e a oferta. Ocorre que historicamente houve vários momentos em que as reservas internacionais não puderam cobrir a discrepância entre demanda e oferta. Por este motivo, ao longo do tempo, foi-se impondo um grande número de restrições à livre movimentação de divisas. Afinal de contas, para manter um preço fixo quando há escassez da mercadoria (no caso, a moeda estrangeira), só através de racionamento. Desde janeiro de 1999, o Brasil tem um regime cambial de taxas flutuantes. Isto significa (em linhas gerais), que não há obrigação do Banco Central atuar, tanto na compra quanto na venda, no mercado de câmbio. A prova de fogo do regime cambial flutuante foi o ano de 2002. A eleição presidencial fez com que houvesse grande procura de moeda estrangeira. Mas o mercado ajustou-se. O dólar, que sexta-feira passada estava R$ 2,11, chegou a atingir a cotação de R$ 4. É verdade que teria subido mais ainda se o Banco Central não tivesse atuado para atenuar o desequilíbrio entre os que queriam comprar e os que queriam vender a moeda estrangeira. No entanto, o episódio deixou claro que o câmbio flutuante funciona bastante bem. Toda vez que muitas pessoas resolvem inesperadamente comprar moeda estrangeira, seu preço sobe e novos vendedores aparecem. Ou seja, com câmbio flutuante, e um volume relativamente baixo de reservas internacionais, não há "crise de balanço de pagamentos". No fim de 2002 as reservas internacionais líquidas do FMI eram de cerca de 16 bilhões de dólares. E isso foi suficiente para manter o mercado sob controle naquelas condições adversas. Hoje as reservas internacionais brasileiras são extremamente confortáveis, atingindo quase 60 bilhões de dólares, valor muito superior. A legislação cambial brasileira não evoluiu como o mercado. Continua amarrada aos conceitos antigos da era do câmbio controlado (onde poderia haver "escassez de divisas", um conceito absolutamente inútil nos dias de hoje). O projeto de lei complementar 32/2006 tem como objetivo adequar a legislação à realidade dos tempos. Em linha geral, a proposta enxuga a legislação e reduz os entraves à livre movimentação de moeda estrangeira. A idéia geral é boa, mas há vários problemas (que podem ser facilmente corrigidos) com o projeto em questão. Primeiro, a lei não deixa as pessoas imunes à ação do governo. Em particular, o artigo quinto da lei permite uma ampla intervenção no mercado cambial, dando poderes ao Conselho Monetário para impedir o livre fluxo de divisas, e transferindo para o Banco Central do Brasil o monopólio das operações de câmbio. Isto seria aceitável para os padrões de negociação cambial do século passado, mas está em total desacordo com as evoluções que aconteceram no Brasil e no mundo especialmente a partir da segunda metade dos anos 90. Na verdade a lei deveria tornar proibido ao Banco Central (e ao Poder Executivo) interferir no livre trânsito de recursos (inclusive impedindo de tributar os fluxos de capitais, com a possível exceção da CPMF). A liberdade total de entrar e sair (obviamente garantidas as fontes de renda que justifiquem as transações) é o que dará estabilidade e convertibilidade plena a nossa moeda.

Como o câmbio é flutuante, quem recebe legalmente recursos e paga seus impostos deveria poder movimentar moeda estrangeira livremente

Segundo, e associado a este fato (um ponto que foi levantado por Gustavo Franco), a lei 4131, de 1962, tem muitos anos de bons serviços prestados ao Brasil, e muitos investimentos diretos estrangeiros foram feitos com este registro. Ora, ocorre que um investidor que já possua o registro de capital estrangeiro pela lei 4131 pode preferir continuar a ser regido por esta lei. Assim, deve-se manter a 4131 para os investimentos registrados até a data de promulgação da lei, e permitir que aquelas entidades que desejem adotar a nova legislação possam mudar do regime antigo para o novo. Terceiro, no seu artigo terceiro cria-se uma conta em dólares no país. Como vários outros analistas já mencionaram, este é um procedimento que tem que ser feito de forma muito cautelosa. A principal razão é que o Banco Central não pode exercer sua função de banqueiro dos bancos, isto é, dar redesconto em moeda estrangeira. Pelo simples fato de que o Banco Central não emite dólares, mas sim reais. Dessa forma, a conta poderia ser domiciliada em outro país, através de subsidiárias ou de agências de bancos que operem no Brasil. Ou, alternativamente, se a conta fosse no país, deveria ter um depósito compulsório remunerado de 100%. Quarto, e por último, a lei não resolve o problema de que a legislação brasileira em vigor tem uma visão negativa do mercado cambial. Com efeito, até hoje há leis e regulamentos que mencionam a "evasão de divisas" e a "evasão cambial". Ora, como foi visto, qualquer pessoa que receba legalmente recursos no país e pague seus impostos corretamente tem que ter o direito de comprar ou vender moeda estrangeira livremente, uma vez que a taxa de câmbio é flutuante. Assim sendo, se um indivíduo quiser fazer uma operação cambial mas não tiver recursos com origem justificada, das duas uma: ou esta pessoa está em uma atividade ilícita, ou seus recursos provêm de uma atividade legal, mas cujos impostos não foram devidamente pagos. No primeiro caso, o problema não é com a transação em moeda estrangeira, mas sim a ilicitude da atividade. No segundo caso, houve evasão fiscal. Certamente não cabe em nenhuma das duas situações dizer que houve "evasão cambial". Para deixar bem claro, considere o exemplo hipotético de um produtor informal que vai comprar alimentos com seus recursos (que não recolheram os devidos impostos). Ninguém vai acusar este indivíduo de "evasão alimentar", mas sim de evasão fiscal. Da mesma maneira, pensando a moeda estrangeira como uma mercadoria, o problema de alguém que faz uma transação cambial sem origem dos recursos não está no câmbio em si, mas na falta de justificativa para seus recursos, um fato que precedeu à operação financeira. Portanto, o projeto de lei complementar deveria contemplar acabar com esta visão negativa que ainda se tem das operações cambiais no país, alterando as leis e regulamentos pertinentes.