Título: Bula absolvitória preventiva
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 21/02/2006, Brasil, p. A2

Não importa qual a unidade de tempo, qual a natureza da medida, qual o truque estatístico ou qual o argumento sofisticado utilizado, existem hoje seis verdades cuja brutalidade não pode ser confrontada com o relativismo barato a que nos acostumamos.

Elas são: 1º ) O Brasil sofre, há pelo menos 10 anos, da maior taxa de juro real do mundo quer seja medida pelo que o Tesouro paga pelos papéis públicos de 30 dias (que idealmente não têm "risco"), quer medida pela taxa do crédito de qualquer natureza que o pobre setor produtivo paga ao próspero setor financeiro; 2º ) Nesses 10 anos, a taxa de crescimento do PIB "per-capita" tem sido obscenamente baixa, mesmo diante da dramática redução do nosso crescimento demográfico. Há anos somos parte do "bloco da lanterninha", constituído pelos países que menos crescem e sempre se defendem com a desculpa que "estão preparando o crescimento futuro com estabilidade"; 3º ) Nesses mesmos 10 anos aumentamos a carga tributária bruta (sempre com a desculpa da "estabilidade") de 28% do PIB para 38%, retirando recursos do setor privado (mais eficiente) para cobrir os déficits do setor público, cada vez menos eficiente; 4º ) Nesses 10 anos não fizemos qualquer esforço para dar um choque de gestão na máquina pública e para controlar as despesas de custeio do governo. E, o que é pior, eliminamos a sua capacidade de investimento. É uma verdade incontornável o fato que o Estado não pode mais ser acomodado dentro do PIB brasileiro, sem o risco de continuar a empobrecer (agora sim, relativamente) nosso cidadão. 5º ) Nesses mesmos 10 anos aumentamos a Dívida Líquida do Setor Público/PIB de 30% para 57% (e agora 52% com viés de alta!), o que levou o governo a avançar no crédito ao setor privado, hoje reduzido a 30% do PIB (quando no passado foi de 70%), que é um dos fatores importantes para a existência da mais alta taxa de juros real do mundo. Desde 1998 essa dívida é financiada da maneira mais imprópria possível. A natureza desse financiamento é responsável, em boa parte, pela "curva de juro teratológica" que esmaga a economia brasileira. O complemento é, certamente, a posição oligopolista do sistema bancário, que sempre se esconde atrás da imensa "bula absolvitória preventiva" que o governo lhe confere com sua irracional política fiscal (tributação) e monetária (depósito compulsório) e, finalmente; 6º ) Nesses últimos dois anos o real transformou-se na moeda mais valorizada do mundo graças, de um lado, à expansão das exportações, não contrastada pelo aumento das importações (devido ao pífio crescimento do PIB), o que nos levou a uma saudável eliminação da dependência externa construída na octaetéride fernandista. De outro, à política monetária que sustentou um diferencial imenso entre a taxa de juro real interna e externa. A valorização do câmbio (que deveria mesmo acontecer) foi acompanhada de uma "supervalorização" que vai cobrar o seu preço num eventual desaquecimento da economia mundial. A grande coragem que se espera do novo governo (a se reeleger ou eleger-se) será de reconhecer que só ele pode corrigir essa "bricolage", esse serviço malfeito ao longo dos últimos 10 anos. A rigor, a tarefa teórica está em marcha. Nos últimos três anos conseguiu-se pelo menos um avanço importante: a quase unanimidade das várias tribos dos economistas em torno da necessidade de um programa que, num prazo razoável, leve o "mercado" a transformar a monstruosa curva de juro atual numa curva normal. Nesta, a taxa de juro real de curto prazo será substancialmente menor do que a de longo prazo. Um ponto importante é que temos de evitar a tentação de mais uma grave "bricolage" sugerida por uma minúscula tribo de economistas que nos últimos 10 anos não aprendeu nada (e não esqueceu nada!), mas imagina poder impor ao mercado a baixa da taxa de juro "na marra" e o alongamento da dívida por alguma forma elegante de "calote"!

Novo governo deve corrigir o serviço malfeito

Na prática o processo já começou:

1º ) Pelo reconhecimento que uma política de redução monotônica da relação Dívida Líquida/PIB é essencial para a baixa consistente da taxa de juro; 2º ) Pelo reconhecimento das inter-relações entre taxa de juro, crescimento econômico e superávit primário para que a condição anterior seja satisfeita; 3º ) Pelo reconhecimento que podemos atrair o capital estrangeiro (sem tributação) para alongar a dívida sem valorizar ainda mais a taxa de câmbio real; 4º ) Pela lenta (mas que vai acelerar-se quando ficar claro a tendência de queda da taxa de juro real) substituição do financiamento da dívida por papéis silicados, por papéis prefixados ou referidos a índices de preços; 5º ) Pelo reconhecimento que a ação governamental deve ser amigável com relação ao setor privado, proporcionar-lhe paz interna e externa, além de uma razoável prestação de justiça e; 6º ) Pelo clamor público contra o nível de tributação e a favor de um enxugamento do Estado com a descentralização de suas atividades fins.

O candidato que não enfrentar corajosamente esses problemas no seu programa de comunicação com o público e vier com a tradicional e desacreditada "milonga social", sem insistir no preliminar e cuidadoso arranjo produtivo para acelerar o crescimento, vai merecer o justo repúdio dos eleitores, que estão fartos de apenas "um pouco mais do que temos tido"!