Título: Espectro da radicalização ameaça Israel e palestinos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 21/02/2006, Opinião, p. A14

A reação à vitória do Hamas nas eleições palestinas por parte de Israel e dos EUA abre o caminho para a paralisia, por longo tempo, das negociações de paz, ou até mesmo para uma nova Intifada. A ascensão do premiê Ismail Haniyeh, líder moderado do Hamas, no sábado, antecedeu de poucas horas uma reunião de gabinete do governo israelense que impôs sanções econômicas e políticas aos palestinos. Pouco dias antes, o governo americano havia requisitado a devolução de US$ 50 milhões em ajuda financeira à Autoridade Palestina. O aperto financeiro, que deve se intensificar, pode servir de estímulo adicional para uma nova onda de violência por parte dos grupos radicais, representados ou não na AP. As pressões sobre o Hamas são intensas e partem também das próprias forças que compõem o espectro político palestino. Sondado para fazer parte de um governo de unidade nacional, o Fatah, a mais tradicional e principal força por trás da AP, se recusou a fazê-lo, embora dividido quanto à estratégia a seguir. Em seu discurso na abertura dos trabalhos do Parlamento, do qual o Hamas conquistou 74 das 138 cadeiras, o moderado Mahmoud Abbas, presidente da AP, incitou o Hamas a aceitar a existência de Israel e a respeitar todos os acordos firmados em Oslo. As condições da instalação do Parlamento foram emblemáticas da nova situação criada pela vitória surpreendente do Hamas. Os deputados foram impedidos pelo governo israelense de se moverem entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, o que obrigou os palestinos a realizarem uma sessão em Ramallah e outra em Gaza. Além disso, Abbas fez várias advertências ao Hamas, que foram ignoradas ou recebidas com frieza pela maioria dos representantes do grupo islâmico. O novo premiê tem três semanas para indicar um gabinete e tende a preenchê-lo nas principais posições com "técnicos", diante da recusa de contemporização do Fatah. Mais grave foi a investida do primeiro-ministro em exercício de Israel, Ehud Olmert. Ele determinou o corte do repasse dos impostos de US$ 55 milhões que garantem os salários de 137 mil funcionários da AP e uma das principais fontes de receitas a sustentar a economia de subsistência na qual vivem as faixas miseráveis da população. Israel chegou a considerar medidas ainda mais radicais, como a proibição do ingresso de palestinos em Israel e do comércio. Olmert disse que a AP estava "se tornando de fato uma autoridade terrorista", e que não manterá qualquer contato com um governo do qual o Hamas faça parte, "seja de forma marginal, significativa ou total". As eleições de 28 de março em Israel explicam parte deste radicalismo. Com Ariel Sharon fora do páreo e a pressão ininterrupta dos direitistas do Likud, o novo partido, o Kadima, move-se em um terreno minado. Tem que se distanciar do Likud para firmar um rosto próprio, mas não abdica da política radical do Likud, da qual o próprio Sharon resolveu se distanciar. Os EUA fazem pressão extra para isolar o Hamas e ela aumentou após os desafios nucleares lançados pelo Irã, um dos financiadores do grupo palestino. Apenas a União Européia resiste, com razão, a cortar toda a ajuda oficial aos palestinos. É certo que isso é difícil de ocorrer, já que boa parte dos recursos não são repassados diretamente à AP, mas a ONGs e a programas de assistência específicos. Ainda assim, a asfixia econômica ronda os territórios ocupados por Israel. EUA, Israel e Abbas querem do Hamas, com termos diferentes, a mesma coisa - que se desarme e aceite Israel. O Hamas, porém, se jogou de corpo e alma nas eleições e cessou seus ataques a Israel desde agosto de 2004. Escolheu um líder moderado para premiê e procura composição com outras forças políticas. São demonstrações práticas de moderação, que são consideradas, de forma irrealista, como insuficientes. Há muitas razões para se exigir que o Hamas se desarme e aceite os acordos de Oslo, mas isto simplesmente não ocorrerá logo. O Hamas não rasgará seus princípios sob ameaças de Israel e muito menos o fará em função de promessas que - o passado mostra - jamais se realizaram. As sanções econômicas a um povo que escolheu legitimamente seus representantes podem soar como se Israel e seus aliados tivessem o direito de escolher em quem os palestinos devem votar. É uma receita certa para novas revoltas, que uma atitude moderada, de esperar para ver e de sondagem cautelosa da nova realidade, poderia evitar.