Título: Em busca do investimento
Autor: Jean-Michel Severino
Fonte: Valor Econômico, 21/02/2006, Opinião, p. A15

Um rodada que se propõe ser de desenvolvimento não poderia ignorar esse desafio

O encontro de Hong Kong da Rodada Doha de negociações sobre o comércio deixou um sentimento palpável de frustração no mundo em desenvolvimento por causa do ritmo lento de liberalização aceito pelos países ricos. Assim, poderá parecer ingênuo e contraproducente elevar a expectativa e sugerir que precisamos avançar para além do comércio e deslocar o investimento para o topo da nossa lista de prioridades. Poderá alguma "rodada de desenvolvimento" digna do nome ignorar esse desafio? Originalmente, pretendia-se que a Rodada Doha abordasse o investimento, porém os países em desenvolvimento optaram por rebaixar o tema e concentrar-se na agricultura. Essa tática comprovou ser uma faca de dois gumes. Na China, Brasil, Malásia e México, o investimento direto estrangeiro (IDE) responde por 8% a 12% da formação do capital fixo bruto - sem geração de dívida. Embora os países menos desenvolvidos atraiam menos de 3% dos investimentos do norte-sul, esses fluxos respondem por mais de 3% dos seus PIBs, um nível superior à média dos países em desenvolvimento. Na esperança de fomentar o IDE, os acordos bilaterais multiplicaram-se, porém raramente levaram a compromissos equilibrados. A concorrência entre os países para atrair investidores é intensa, e somente alguns poucos, como a China e a Índia, têm condições de negociar em termos iguais com o mundo industrializado. Os países industrializados, portanto, têm interesse em exigir diálogo multilateral em torno das condições de investimento com o propósito de obter certas garantias coletivas. Realmente, sem retornar à ilusão do planejamento econômico, esses países precisam ser capazes de estabelecer condições para investidores estrangeiros que visam maximizar o impacto local sobre a taxa de emprego, a difusão tecnológica, parcerias estratégicas e assim por diante. Ao mesmo tempo, os países em desenvolvimento podem sentir necessidade de promover setores privados locais e "indústrias nascentes" através de medidas protecionistas temporárias, que poderão ajudá-los a elevar o nível da sua produção no caminho da liberalização. Não há nada herético sobre essas propostas. Afinal, os países desenvolvidos fizeram exatamente o mesmo. No século XIX, os EUA restringiram o investimento estrangeiro em diversos setores, inclusive o financeiro. Hoje, tanto os EUA como a UE mantêm um controle estreito sobre aquisições internacionais. Os países emergentes da Ásia desviam-se igualmente do modelo liberal puro. Mesmo a Irlanda, a paladina da liberalização econômica, já partiu para uma abordagem mais seletiva. A recusa em reconhecer a legitimidade destas estratégias levou ao colapso do Acordo Multilateral sobre Investimento em 1998, depois de três anos de negociações entre os países membros da OCDE. O projeto foi considerado - acertadamente - como o equivalente a uma renúncia à soberania, pois introduzia um rígido princípio de não-discriminação entre empresas locais e estrangeiras que poderia eliminar o espaço de manobra do país anfitrião sem oferecer nada em troca. Esse tipo de perspectiva seria ainda menos aceitável para os países em desenvolvimento.

A promoção dos fluxos de investimento para o mundo em desenvolvimento poderá unir todos os países em torno de um objetivo comum

Sob quais condições seria razoavelmente possível esperar a retomada de um acordo multilateral sobre investimento? Para ser viável, tal acordo deve reconhecer a legítima necessidade de haver alguma regulação. Ele também precisará ajudar os países pobres a lidarem com a quase generalização dos padrões da "responsabilidade sócio-ambiental" que vem moldando cada vez mais as práticas corporativas e a demanda dos consumidores. Ele deverá incorporar um código de ética dos investidores, bem como uma fórmula para compartilhar os custos de implementação destes padrões entre Estado, operadores estrangeiros e subcontratados locais. Naturalmente, a imposição das mesmas condições de investimento em todos os países poderia diminuir o incentivo para investir nos países menos atraentes. Um acordo poderia ser alcançado, porém, para estabelecer categorias de países, cujo objetivo mais importante seria prevenir o "dumping" entre países no mesmo estágio de desenvolvimento. Para ter sucesso, uma negociação multilateral também precisará abordar as expectativas dos operadores estrangeiros, que querem garantias de que seus investimentos são seguros. Um acordo poderia conter cláusulas para aprimorar o ambiente de negócios - sua transparência e previsibilidade - por meio da criação de uma estrutura de intervenção estatal sem privar o governo das suas prerrogativas. A medida poderia reduzir a probabilidade de ocorrência de crises, ao mesmo tempo implementando mecanismos de compartilhamento de gastos, caso ocorram. Nenhum acordo multilateral de investimento conseguirá abordar todos os problemas institucionais e deficiências de mercado que impedem o fluxo do capital rumo aos países em desenvolvimento. Alguns economistas apontam para informações imperfeitas, que impedem que as empresas considerem os retornos mais elevados sobre investimento disponíveis no mundo em desenvolvimento. Se esse ponto de vista estiver correto, um acordo poderá criar novos instrumentos para disseminar informação, sinalizando ao mesmo tempo o comprometimento dos países pobres em acolher o IDE. Outros analistas apontam para os crescentes retornos que acompanham maiores concentrações de investimento - uma força que atua em detrimento dos países pobres. No mínimo, um acordo multilateral poderá oferecer uma oportunidade para reconhecer a existência do problema, para refletir sobre como melhor coordenar investimentos e para ajudar a encaminhar a devida assistência ao desenvolvimento. Apesar da complexidade envolvida e da necessidade de proporcionar assistência técnica aos países mais fracos na negociação, um acordo de investimento multilateral precisa estar entre as maiores prioridades na pauta internacional. Realmente, se por um lado as questões do comércio agrícola colocam os interesses nacionais dos países ricos e dos países pobres em rota de colisão, a promoção dos fluxos de investimento para o mundo em desenvolvimento, por outro, poderá unir todos os países em torno de um objetivo comum.