Título: O caldeirão que cozinhou o PT
Autor: Maria Inês Nassif
Fonte: Valor Econômico, 02/03/2006, Política, p. A6

Nos primeiros dias de junho de 2002, o jornalista Clóvis Rossi reproduziu, na "Folha de S. Paulo", os termos de uma conversa com o investidor George Soros, durante um seminário promovido pelo "Council on Foreign Relations". Soros disse que os países periféricos, inclusive o Brasil, não tinham autonomia de voto. O mundo era parte do império americano e apenas os cidadãos americanos teriam o direito de escolha de seus governantes. O instrumento dessa hegemonia seria o mercado financeiro internacional, senhor das profecias auto-realizáveis. Se o mercado apostasse que o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, daria o calote, isso deflagraria ações preventivas do próprio mercado - e de tal extensão que, uma vez eleito, Lula encontraria um quadro econômico insustentável. O calote seria então obrigatório. Esse seria o preço a ser pago pelo povo brasileiro por não ter se curvado ao candidato da preferência do mercado. A declaração provocou fortes reações. Era chantagem, ingerência em assuntos internos, declararam governo e oposição. Quase quatro anos depois, talvez seja a hora de mudar esse julgamento emocional, patriótico, sobre o raciocínio que chocou brasileiros. Soros, afinal, simplesmente deu lógica e ideologia a um movimento que vinha do mês de abril, ao ritmo e sabor das pesquisas de opinião que colocavam Lula em primeiro lugar e acenavam para as pequenas chances de vitória do tucano José Serra. O pecado foi a nacionalidade de quem falou - e também a sua fonte de renda. Soros, o mega-especulador, é a personalização desse mercado. A verdade é que, no quintal brasileiro, os responsáveis pela gestão econômica e o PSDB já pontificavam que o Brasil quebraria se o PT vencesse a eleição. O discurso "ou Serra, ou o caos" foi fartamente usado nos primeiros movimentos especulativos contra o real. Era dirigido pelo governo e pelos próprios agentes do mercado - inclusive as agências de risco, que a partir do fim de abril passaram a rebaixar a classificação dos títulos brasileiros, alimentando mais especulação - à opinião pública que engrossava pesquisas favoráveis a Lula. No momento seguinte, quando se percebeu que a especulação era maior do que suportaria uma economia frágil - e que a bomba não iria esperar a posse do novo presidente para estourar - o discurso do governo ao mercado, pretensamente tranquilizador, era o de que o eleitor brasileiro padecia de uma mal atávico, o conservadorismo, e este acabaria prevalecendo sobre todas as pesquisas. Fatalmente, em algum momento mais próximo das eleições as pesquisas reverteriam o favoritismo de Lula em favor de Serra. Governistas, tucanos envolvidos na campanha presidencial, analistas e "especialistas" em Brasil do mercado financeiro apostavam na inexorável mudança dos ventos.

Mercado não ganha votos, mas molda candidatos

Como as pesquisas não corresponderam a essa lei divina, a cada nova rodada os mercados reagiam mais à consolidação de Lula. Os solavancos provocados pelos movimentos especulativos produziram, então, mais um recuo do governo. O discurso eleitoral de cobrança direta ao eleitor - algo como: você, cidadão, será responsável pela quebra do país se Lula for eleito - foi substituído pelo recado ao PT e Lula. A partir de meados de maio, a equipe econômica passou a cobrar do PT medidas para acalmar o mercado. O ministro Pedro Malan arrogou-se a função de enquadrar o PT a um modelo palatável para o capital estrangeiro. O partido, então, já havia moderado sensivelmente o seu discurso econômico. Até entrar na montanha russa dos ataques do mercado, o partido tinha definida a linha programática que deveria nortear a formulação do seu programa. "Concepção e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil" foi aprovado no Encontro Nacional, em dezembro de 2001, e era o produto de intenso trabalho de negociação interna feito por Celso Daniel. O documento era menos esquerdista do que qualquer outro aprovado pelo PT ao longo da sua história, mas ainda assim fazia profissão de fé na ruptura e bradava contra a legitimidade do FMI e da dívida externa. O eleitor, acostumado a uma realidade partidária onde decisões programáticas inevitavelmente sucumbem ao processo eleitoral, e depois ao poder, não se preocupou com isso. Malan, sim. Sabia - e também o mercado - que as decisões internas do PT refletiam uma "correlação de forças", e "Concepções e Diretrizes" era a prova de que ela não era totalmente favorável à moderação. Lula jurava respeito aos contratos, às metas de inflação e ao superávit fiscal. Malan contra-atacava: o PT dava "passos" na direção correta, mas tinha tomado decisões incorretas no passado que ainda não haviam sido revistas. O PT tinha que provar que havia mudado. Malan manteve o bordão até a véspera da reunião do Diretório Nacional do PT, em que iria ser lida a "Carta ao Povo Brasileiro". Era o recuo formal do partido em relação à "Concepção e diretrizes...". A Carta botou no papel, com a aquiescência do Diretório Nacional, o que mercado e Malan recomendavam: o compromisso, avalizado por uma instância partidária, de manter contratos, as metas de inflação e superávit primário. A reunião foi num sábado, 22 de junho de 2002. O discurso eleitoral prevaleceu nos jornais do final de semana, mas na segunda feira o mercado estava devidamente informado sobre a Carta. Amanheceu calmo. Por pouco tempo. Os movimentos especulativos continuaram durante o processo eleitoral. O mercado manteve o PT sob permanente pressão até que, no dia 1º de janeiro de 2003, quando Lula foi empossado apoteoticamente, já não existia diferença entre a economia de Malan e a prometida pelo empossado ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Era o ponto final de um processo vitorioso de pressão do mercado sobre as urnas. Talvez naquele momento Soros tenha percebido o equívoco de sua formulação: o mercado dita ao eleitor o voto, mas se o cidadão não o obedece, os movimentos especulativos tratam de adequar o candidato mais popular às suas exigências. O PT enfrenta um novo Encontro Nacional em abril. Para a esquerda, esta é a instância máxima de definição programática. Lula, por sua vez, anuncia uma nova Carta. É a história que se repete, dessa vez mais parecida com uma pequena farsa.