Título: O processo de consolidação da siderurgia mundial
Autor: Mônica R. Carvalho
Fonte: Valor Econômico, 02/03/2006, Opinião, p. A10

Uma nuvem de incerteza paira sobre a sobrevivência do atual desenho desse mercado

Há pouco mais de um mês, o mundo do aço tomou conhecimento da oferta que o grupo Mittal fez pela posição que poderá garantir o controle do segundo grupo siderúrgico mundial, a Arcelor. O grupo Mittal Steel, maior produtor global de aço, já deixou de ser indiano há alguns anos: era uma divisão internacional do grupo local Ispat, que lhe deu origem antes da cisão que dividiu a empresa e a família. A oferta em si não constituiu uma surpresa. Para todos que acompanham o setor siderúrgico de perto, sabe-se que a onda de consolidação global que marcou a indústria de mineração nos últimos 15 anos com certeza vai se infiltrar pela siderurgia, imprimindo-lhe a mesma direção. A questão que resta é apenas a velocidade com que isso ocorrerá. Os acontecimentos precipitados pelo forte crescimento da economia chinesa e a mais recente "descoberta" da Índia como potencial forte concorrente para os demais produtores de aço, bem como os preços mais altos do minério de ferro, nos remetem às razões pelas quais hoje paira uma nuvem de incerteza sobre a sobrevivência do atual desenho da siderurgia global, bem como da brasileira. Entre 1990 e 2004, fusões e aquisições na indústria de mineração movimentaram US$ 90 bilhões em 43 transações. No segmento de minério de ferro, especificamente, restaram três grandes produtoras mundiais, que concentram quase 70% do mercado transoceânico: as australianas Rio Tinto e BHP Billiton e a brasileira Vale do Rio Doce (CVRD). Os principais projetos de expansão na produção de minério de ferro somarão 156 milhões de toneladas nos próximos cinco anos; desse volume, 88% devem ocorrer no Brasil e na Austrália, indicando que haverá uma concentração ainda maior neste mercado nos próximos anos. Tal concentração, aliada à forte demanda chinesa, deve resultar não só na sustentação dos preços do minério de ferro, mas na sua estabilização em patamares mais altos do que no passado; daí resulta não só a saúde financeira das mineradoras de ferro como um incremento do seu poder de barganha nos próximos anos. A indústria siderúrgica global está alojada entre fortes oligopólios, tanto na ponta dos seus insumos quanto dos seus principais clientes, como as montadoras de automóveis. Considerando-se o cenário recente de fortíssima demanda por aço no mercado chinês, nota-se que os efeitos das estruturas oligopólicas sobre a fragmentada siderurgia mundial foram agravadas. Particularmente, observa-se que a despeito do cenário de ciclo descendente (produção e preços de aço caindo) em todas as regiões do mundo, a demanda por seus insumos permanece forte, suportada pela demanda chinesa. De outro lado, indústrias como a automobilística reproduzem dentro dos mercados chinês e indiano as mesmas alianças estratégicas para o suprimento de aço que em outras regiões do planeta, aumentando a dependência das siderúrgicas fornecedoras em contratos de volumes cada vez maiores, com uma conseqüente maior concentração de risco.

Para manter a indústria brasileira competitiva, é fundamental redesenhar a estrutura do seu setor siderúrgico

Os dois principais insumos para a indústria siderúrgica são carvão mineral e minério de ferro. Entre China, Brasil e Índia, a primeira é grande produtora de carvão mineral, mas tem minério de ferro em qualidade e quantidades insuficientes; o Brasil tem reservas abundantes do minério de melhor qualidade do mundo, mas não possui carvão mineral; a Índia tem carvão em quantidade suficiente para suprir sua própria siderurgia e minério de ferro de alta qualidade que, por lei, é reservado apenas ao seu mercado doméstico. A base da siderurgia indiana ainda se assemelha muito ao perfil da brasileira: bastante fragmentada e ainda mais voltada para o mercado doméstico. A grande característica que as difere são os fatores geopolíticos que hoje conferem vantagens comparativas à Índia. O governo indiano, tanto quanto o chinês, lançou planos consistentes de investimento em infra-estrutura e na própria indústria siderúrgica, insumo básico de qualquer processo de transformação do perfil urbano. O plano de expansão da siderurgia indiana deve elevar a sua produção das atuais 36 milhões de toneladas anuais para até 133 milhões de toneladas nos próximos anos. Parte dessa expansão será financiada por capital estrangeiro, inclusive chinês, com a finalidade de poder utilizar o minério de melhor qualidade somente direcionado para produção doméstica na Índia. Aí reside a principal diferença entre as duas histórias: não apenas tudo indica que a Índia deva se beneficiar de um robusto crescimento doméstico, mas que também deva se tornar uma importante exportadora de sua produção, especialmente para a China. Dois fatores afetam diretamente a siderurgia brasileira: em primeiro lugar, tudo leva a crer que a siderurgia global deva ser alvo de mais consolidação, o que em algum momento será refletido no cenário doméstico do Brasil; em segundo lugar, os avanços das siderurgias indiana e chinesa também indicam que ambas devam se tornar exportadoras líquidas de aço bem como de produtos que utilizam aço intensamente, portanto disputando fatias de mercado diretamente com as brasileiras em bases competitivas similares ou superiores. Finalmente, há uma tendência global de verticalização da cadeia produtiva, tornando o acesso aos insumos, e em particular ao minério de ferro, um fator de incremento de competitividade na produção do aço. Como consequência, a necessidade de redesenho da estrutura da siderurgia brasileira para a manutenção da sua competitividade mostra-se crucial. Enxergamos a verticalização da produção e o aumento de escala como armas poderosas para que as empresas brasileiras melhor enfrentem os avanços, principalmente da Índia, em seus mais atrativos mercados. Entretanto, outras questões permeiam o caminho da sua reestruturação: quem e como sobreviverá não será uma resultante simples de fatores de competitividade. Falhas anteriores em promover associações que fazem todo sentido em termos operacionais (mas que não encontram ressonância entre os principais acionistas) indicam que certas "idiossincrasias locais" devem ter um papel determinante no futuro desenho da siderurgia brasileira.