Título: Como abater uma empresa em pleno vôo
Autor: Mara Luquet
Fonte: Valor Econômico, 02/03/2006, EU &, p. D6

Aviação Regime militar de 1964 se empenhou para quebrar a Panair, beneficiando diretamente a Varig

Durante três décadas, muitos brasileiros voaram nas asas da Panair, companhia que suscita histórias e emoções aos que viveram seus anos dourados. Sua história é quase um caso de família, daqueles em que o desfecho provoca até hoje ressentimentos, mágoas e muito diz-que-diz. A Panair foi a primeira grande empresa aérea do Brasil, espécie de orgulho nacional que atravessava o país e cruzava continentes com sua cor verde-bandeira. Seu fim nunca foi digerido porque abateu a empresa em pleno vôo, e não é uma figura de linguagem. Por isso, neste momento particularmente difícil que vive o setor aéreo, vale a pena ler "Pouso Forçado - A História por Trás da Destruição da Panair do Brasil pelo Regime Militar", livro recém-lançado do jornalista Daniel Leb Sasaki, editado pela Record. Todo aeronauta enxerga a aviação não como um trabalho, mas como uma verdadeira paixão. Na Panair, esses laços de amor eram levados ao extremo. Por isso, o caso Panair extrapola os limites da área administrativa. A empresa conseguiu reunir em seus quadros uma equipe que se sentia verdadeiramente "dona" da empresa. O que leva centenas de antigos empregados a continuar comemorando o aniversário da empregadora, 40 anos depois do fechamento? Quem explica o fenômeno "Família Panair"? Para a "Família Panair", seu algoz foi a Varig, maior beneficiária de seu desaparecimento. A história remete aos malabarismos legais - e outros nem tanto - que foram feitos para que a Varig saísse do episódio senhora única das linhas internacionais. Entre os artifícios legais utilizados pelo regime militar para abater a Panair estariam dois decretos que ironicamente atrapalharam bastante a Varig em sua tentativa de recuperação financeira atual. Até recentemente, a Varig não podia pleitear a concordata. Os decretos-lei 496 e 669, de 1969, que impediram a Panair de pedir concordata para tentar uma recuperação financeira, ainda vigoravam em fevereiro de 2005 e proibiam a Varig - devedora de quase R$ 7 bilhões - de se proteger dos credores no caso de um pedido de falência. Por que esse resquício do Ato Institucional Nº 5 ainda permanecia? "A única resposta que vem de imediato à mente é mesmo o caso Panair. Ao revogar essa legislação, a União automaticamente seria forçada a reconhecer as ilegalidades que praticou e estaria condenada ao pagamento de vultosas indenizações, algo que não estava preparada para fazer", diz Sasaki. Quando foi decretada a falência da Panair do Brasil houve uma comoção geral. O argumento era "irrecuperabilidade financeira". A empresa não tinha nem de longe os problemas financeiros que a Varig exibe hoje. Segundo os dados da diretoria financeira, a empresa acabara de entrar em plena fase de recuperação financeira depois dos acordos firmados com as companhias aéreas européias. O acordo de divisão de tráfego aéreo feito com a Air France, que passaria a vigorar naquele mesmo mês, traria aumento de receita de US$ 5 milhões por ano. Com ele, a Panair esperava cobrir o déficit operacional previsto para aquele ano de 1965, que era de cerca de US$ 4 milhões. Além disso, os pagamentos dos funcionários estavam em dia e os prazos dos outros compromissos tinham sido negociados. A história em detalhes está no livro de Sasaki. O trabalho é resultado de três anos de pesquisa do jornalista e recebeu o segundo lugar no Prêmio Expocom de Jornalismo. Ele relata como numa manobra envolvendo o Judiciário, o governo militar, por meio do antigo Ministério da Aeronáutica, sem nenhum amparo legal, cancelou as concessões de vôo da Panair para a Varig. Naquele momento, a Varig já tinha os aviões prontos para realizar os vôos no mesmo dia. Entre as razões, segundo o livro de Sasaki, a falta de apoio ao regime militar pelos empresários Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, acionistas majoritários da empresa, teria sido definitiva. "Por esses motivos, a Panair do Brasil merece outros estudos aprofundados", diz Sasaki. Além de sua importância na consolidação da aviação nacional, ela constitui um case empresarial único. Como explicar a sua trajetória na Justiça, que representa caso único também na história forense? Sasaki enumera a extensa lista de problemas jurídicos que encontrou vasculhando os arquivos da Panair: desentranhamentos, autuações em apartado, decisões levadas a efeito à revelia do Ministério Público e sem consulta prévia das partes interessadas, aplicações retroativa de decretos-leis casuísticos, dilapidação de bens, assenhoramentos, tentativas de aliciamento, ignorância ousada de preceitos judiciais básicos e universais, abuso de poder, tráfico de influência, submissão do Judiciário ao Executivo, violação dos direitos da coisa julgada, crimes de difamação e calúnia legitimados pela Justiça, intimidações e ameaças. "A Justiça do país, no caso Panair, retrocedeu séculos, voltando aos tempos da Inquisição", conclui.