Título: Especialista da OMS critica falta de apóio para o setor no Brasil
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2004, Empresas, p. B-7

Eloan Pinheiro foi diretora-geral do Far-Manguinhos entre 1993 e 2002, quando o laboratório estatal desenvolveu genéricos para Aids. Hoje, na Organização Mundial de Saúde (OMS), ela não esconde o temor com os rumos da indústria farmacêutica no Brasil. Para ela, a indústria nacional está perdendo oportunidades ao não participar de concorrência na OMS para vender genéricos aos países da África e da América Latina, que recebem financiamento do Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária. Além disso, no seu trabalho na OMS, ela constata que o próprio preço dos genéricos contra Aids no Brasil está hoje entre os mais caros no mundo. Uma das razões é que o atual governo não negocia com os grandes laboratórios como fazia o anterior, que não hesitava em ameaçar com quebra de patentes. Simpatizante do PT, Eloan sugere uma real e ampla política industrial para o setor que supere "prioridades só retóricas". Ela tem contrato de quatro meses na OMS, até dezembro, para uma dura e delicada tarefa: recalcular o custo real de remédios financiados pelo fundo. Criado há três anos com a esperança de obter pelo menos US$ 7 bilhões por ano dos países ricos para financiar o combate a pandemia nos países em desenvolvimento. Até agora, porém, o fundo arrecadou bem menos. E só aprovou doações de US$ 3 bilhões para 128 países comprarem remédios. As conclusões da brasileira são de que quem continua ganhando é a grande industria farmacêutica. Trechos da entrevista: Valor: O que a senhora está fazendo exatamente na OMS? Eloan Pinheiro: Com base em minha experiência no Brasil, fui convidada pela OMS para conduzir um trabalho técnico para calcular o custo real de um medicamento. Isso está no contexto do Fundo Global de Combate a Aids, Tuberculose e Malária, e do objetivo de dar tratamento a três milhões de aidéticos até o final de 2005. Hoje, há quase um milhão deles em tratamento, metade nos países em desenvolvimento. A OMS precisa saber qual o custo de um remédio, porque quer buscar o preço humanitário para um tablete, um comprimido que deve ser comprado por países pobres. A idéia é que remédio é um bem público. E ainda mais contra pandemia de Aids, numa situação de crise de saúde publica. Eu consegui os preços das matérias primas fundamentais e calculei quanto custa um remédio. Valor: Quais suas primeiras constatações? Eloan: Constato que os laboratórios estão praticando um preço correto, mas não um preço humanitário como eles dão a entender. Os preços dos remédios comprados com dinheiro do fundo global embutem, todos eles, o custo de pesquisa, desenvolvimento, marketing e despesas administrativas. Ora, preço humanitário seria se os laboratórios repassassem esses custos a outros produtos, permitindo um preço menor nos antivirais. Valor: Mas há compromissos de preço mínimo? Eloan: Há alguns compromissos, mas na prática existe infelizmente uma miscelânea de preços. Honduras paga pelo tablete três vezes mais que um país africano. Cuba paga proporcionalmente altos preços por genéricos por causa do isolamento de sua economia. A situação é pior nas ex-repúblicas soviéticas. Um tratamento que deveria custar US$ 300 por ano por paciente, praticado hoje em alguns países, lá está custando US$ 3 mil. O mesmo coquetel de remédios, vendido pela mesma empresa, é dez vezes mais caro. Valor: Como reduzir esse custo? Eloan: É preciso abrir as planilhas das empresas farmacêuticas, ainda mais quando se tem uma pandemia que mata mais que a segunda guerra mundial. Valor: A industria farmacêutica aceitaria isso? Eloan: A pressão vai aumentar. A industria farmacêutica está com uma péssima imagem. O fundador da Merck dizia que veio para fabricar vidas, não para fazer comércio. Tudo bem que a industria farmacêutica seja lucrativa. Mas é absurdo pensar o medicamento como bem público dessa maneira. Os países em desenvolvimento representam apenas 20% do faturamento das grandes indústrias farmacêuticas. Se houvesse uma política de expansão de maior acesso de remédios para esses países, os laboratórios continuariam lucrando porque venderiam muito mais por um preço baixo. Valor: A compra de genéricos reduziu os preços? Eloan: Os genéricos também estão caros porque não têm concorrência. Há 40 empresas de genéricos que fazem produtos finais contra Aids no mundo. Mas na pré-qualificação na OMS só tem a Cipla e a Strides, da Índia, vendendo para o fundo. Há casos em que um país pobre compra genérico 30% mais caro que o remédio original, patenteado. Valor: Por que o Brasil não vende genéricos de Aids para o fundo? Eloan: É algo que o Brasil deveria responder. Sugiro que a Anvisa estimule a participação em pré-qualificações para vendas na OMS no futuro. Valor: A industria de genéricos do Brasil poderia exportar? Eloan: A indústria de produtos acabados contra a Aids, sim. Os que produzem farmoquímicos também teriam capacidade. Mas o Brasil não tem política de exportação, como tem a China e a Índia que oferecem uma série de incentivos para exportar. Valor: Os preços brasileiros são competitivos? Eloan: Alguns estão um pouco acima do preço internacional. Mas é porque a industria só atende o mercado interno. Se produzir mais e exportar, o preço cai. A indústria brasileira que produz antivirais deve entrar no mercado internacional. Valor: Comparativamente, o genérico no Brasil é barato? Eloan: Genérico de Aids no Brasil está na faixa de preço mais alta de medicamentos do fundo. Valor: Como isso é possível? Eloan: Durante um tempo, houve controle do Ministério da Saúde, mas parece que depois deixou de existir. Como uma parte dos remédios genéricos são supridos por laboratórios estatais, há uma lógica em dar subsídios, mas não tanto. Quanto aos preços de remédios patenteados no Brasil, como Efavirenz e Tenofovir, também estão na faixa mais alta. O Brasil está pagando US$ 1,57 por tablete de Efavirenz, quando o preço médio é de US$ 1,12 já com lucro para indústria. Mais absurdo é que o Brasil esteja pagando US$ 7 pelo tablete de Tenofovir, que é uma molécula muito velha. Nada justifica o Brasil estar pagando pesquisa e desenvolvimento de uma molécula inventada nos EUA em 1985, que foi aprimorada num sal para segundo uso, contra a Aids. Droga para segundo tratamento está fora da lei brasileira de patente e ainda assim o Brasil registrou o Tenofovir. O Brasil hoje tem técnicos que não deveriam permitir que isso aconteça. Valor: O que deveria ser feito? Eloan: O Brasil já deveria ter aplicado licença compulsória sobre pelo menos três produtos: Efavirenz, Nelfinavir e Kaletra. A lei de patentes tem um artigo estabelecendo que a indústria farmacêutica detentora da patente tem três anos para produzir o remédio registrado no Brasil. Após esse período, se não produz localmente, pode ter a patente quebrada. E uma maneira da industria nacional ter know how. Valor: Por que o governo não toma essa decisão? Eloan: Como a lei nunca foi aplicada, há um certo receio de faze-lo. Mas basta seguir os Estados Unidos, que são o país que mais quebra patentes sob as alegações mais diversas.