Título: A dívida pública e o combate à inflação
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2006, Brasil, p. A2

A elevada dívida pública brasileira, com prazos de vencimento curtos e forte indexação à taxa de juros de curto prazo, tem criado constrangimentos para a ação do Banco Central. Na prática, embora não pareça, o BC, desde a adoção do regime de metas para a inflação, em meados de 1999, tem dosado a política de juros com um olho na evolução da dívida pública. Na visão de muitos, tem ocorrido justamente o oposto: interessado apenas em perseguir a meta de inflação, a autoridade monetária lança de mão de juros excessivamente altos que, no fim, elevam a dívida e sacrificam o crescimento do país. Intitulado "Meta Ótima para a Inflação em um Contexto de Dívida Pública Elevada", um interessante texto para discussão escrito recentemente pelo economista Manoel Carlos de Castro Pires, do IPEA, mostra que o BC, na verdade, tem flexibilizado o regime de metas, abrindo mão de alcançar a inflação prevista, para não acelerar ainda mais o crescimento da dívida. Ao estudar o assunto, Castro Pires concluiu que, em geral, os países desenvolvidos que adotaram o regime de metas definiram uma inflação de 2% a ser alcançada no prazo de três a quatro anos. No caso dos países em desenvolvimento, o nível de inflação a ser atingido no mesmo período estaria em torno de 3%. Quando Armínio Fraga, então presidente do BC, adotou o regime de metas no Brasil, seu plano era derrubar a inflação de quase 9% em 1999 para 4% em 2001 e 3,5% no ano seguinte. Os primeiros dois anos do regime foram bem-sucedidos. Embora o centro da meta não tenha sido atingido, a inflação caiu conforme o esperado. Os problemas começaram a acontecer em 2001, quando a economia sofreu o choque do "apagão", com a inflação subindo de 5,97% para 7,67%, contra uma meta de 4%. Em 2002 e em 2003, novos choques, com destaque para o conturbado ambiente eleitoral, levaram o BC novamente a perder de vista o cumprimento da meta. O que se viu paralelamente a isso foi o aumento sucessivo da relação entre a dívida líquida do setor público e o Produto Interno Bruto (PIB). "Essa mesma sucessão de choques que atingiu a economia brasileira e impossibilitou o alcance das metas tornou a dívida pública uma variável extremamente relevante no processo de tomada de decisão do Banco Central, pois a elevação da taxa de juros para alcançar a meta para a inflação faria com que a dívida pública se elevasse ainda mais, o que poderia gerar mais incertezas no cenário econômico e, principalmente, dúvidas quanto à manutenção da política macroeconômica", explica o economista do IPEA em seu estudo.

No Brasil, BC já não olha apenas para a meta

Os números mostram que há uma correlação positiva entre a inflação ocorrida no período analisado e a evolução da dívida líquida (ver tabela). Trata-se de uma comprovação de que o Banco Central, ao perseguir a meta, olhou, sim, para a dívida e, quando foi o caso, desistiu de persegui-la a qualquer custo. Castro Pires explica que o BC se deparou com um trade-off entre a obtenção da meta para inflação estipulada e a obtenção da estabilização da dívida pública. "(Isso) indica que, em um ambiente de dívida pública elevada, como é o caso do Brasil, a meta para inflação deve ser determinada de acordo com o peso que o BC dá ao equilíbrio fiscal", diz o economista do IPEA, tocando num ponto importantíssimo para o atual debate econômico: afinal, o BC se comunica ou não com a área fiscal do governo? "A determinação da meta para inflação no Brasil deveria considerar a capacidade de o BC atingir esse objetivo, dado o peso que esse atribui ao equilíbrio fiscal. Em outras palavras, um programa de metas pouco flexível pode gerar perda de credibilidade ao BC, pois, ao observar o impacto fiscal de suas ações, ele acaba por optar por uma posição intermediária entre inflação e dívida pública", observa Castro Pires. No regime de metas, a credibilidade do BC é crucial. Castro Pires sugere que o Conselho Monetário Nacional, instância que fixa as metas para inflação, procure saber do BC o peso atribuído, em suas políticas, ao equilíbrio fiscal. Isso permitiria ao CMN formular um plano de metas "consistente" e "crível", algo que, por sua vez, daria ganhos de credibilidade à política monetária. O debate é oportuno. Uma maior comunicação entre Banco Central e os Ministérios da Fazenda e do Planejamento pode ajudar, em última instância, a reduzir a taxa de juros. Pode estimular o BC a mostrar à área econômica e à sociedade que o desempenho fiscal do governo, apesar do superávit primário, é sofrível - o governo assegura o pagamento dos credores, mas deixa os gastos correntes crescerem bem acima da inflação; mais adiante, quando a sociedade não tolerar mais o aumento da carga tributária, essas despesas vão se transformar em dívida; tudo isso dificultará a tarefa do BC em reduzir os juros.