Título: Por um FMI rigoroso e independente
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2006, Opinião, p. A9
Fundo está ameaçado por prolongado processo de envelhecimento
Se o Fundo Monetário Internacional não existisse, não precisaríamos reinventá-lo. Não porque seja inútil, mas porque o mundo carece da coragem e da visão necessárias para criar instituições multilaterais poderosas. Este fato por si só já torna as que herdamos mais valiosas. Mesmo assim, elas precisam ser constantemente atualizadas. Caso contrário, correm o risco de sofrer um prolongado processo de envelhecimento. Este perigo atualmente ameaça o Fundo. Três questões precisam ser abordadas. Primeira, como o mundo mudou desde a conferência de 1944 em Bretton Woods, New Hampshire, onde o Fundo foi criado? Segunda, qual é o seu papel contemporâneo (se é que detém algum)? Terceira, quais serão as mudanças necessárias se ele resolver assumi-lo? Mervyn King, presidente do Banco da Inglaterra, abordou exatamente estas questões em um discurso que remeteu à reflexão, em Nova Déli, na segunda-feira (Reform of the International Monetary Fund, February 20 2006, www.bankofengland.co.uk). Se a resposta à segunda pergunta fosse "nenhum", não precisaríamos prosseguir. Não é. Uma instituição preocupada com estabilidade econômica internacional continua detendo um papel. O mundo, porém, mudou de forma fundamental. O sistema de taxas de câmbio semi-fixas entre todas as moedas importantes sumiu na década de 1970. Os controles sobre a conta de capital desapareceram nos países ricos e estão prestes a ser extintos (ou já foram removidos) em muitos países emergentes. Ademais, não são apenas os fluxos de capital privado e os ativos estrangeiros que tolhem o desenvolvimento dos recursos do Fundo: o mesmo ocorre com as reservas cambiais oficiais. Por fim, o uso de recursos do FMI caiu a níveis mínimos, embora isso possa mudar de novo. Hoje, no entanto, só a Turquia deve 72% do valor total a receber dos US$ 18,2 bilhões adiantados conforme as disposições normais. Considerando essas realidades, King relata críticas de que o Fundo "perdeu o rumo". Ele concorda com a afirmação de que o seu "encaminhamento não está claro". Assim sendo, permita-nos esclarecer. Quais são os bens públicos que tal instituição poderá fornecer? Eles se enquadram em seis categorias: informação, análise, assessoria a governos, assessoria sobre coordenação de políticas, gerenciamento de defaults e concessão de empréstimos de emergência. Por estar especificamente preocupado com a estabilidade monetária internacional, King concentra-se no suprimento da informação, na análise e no assessoramento necessários para a cooperação internacional. Especificamente, ele recomenda a execução de três tarefas: a primeira, de que o FMI "deve fornecer e compartilhar informações sobre os balanços patrimoniais de todos os países importantes, sua composição e tamanho, e os vínculos entre eles"; segunda, ele deve "estimular os países a cumprirem seus compromissos mútuos através da promoção de maior transparência sobre políticas nacionais"; e terceira, ele deve oferecer "um fórum para autoridades nacionais discutirem riscos à economia mundial". O ponto de vista de King não é isolado. Rodrigo de Rato, o diretor-gerente do Fundo, também já havia declarado que "precisamos ter um enfoque mais aguçado para a nossa fiscalização, particularmente das economias de maior porte, sistemicamente importantes" (The IMF´s Medium-Term Strategy, February 9 2006, www.imf.org). King observa, porém, que o único ativo do Fundo é o seu poder de análise, persuasão e "implacável relato da verdade", nas palavras de John Maynard Keynes. Essa frase, ele disse, não "evoca muitas lembranças de qualquer uma das muitas reuniões internacionais de que já participei". Para mudar essa situação, o FMI precisará ter uma "voz clara, respeitada e independente".
Sejamos brutais: o FMI não está à beira da obscuridade, como sugere Mervyn King, e sim da irrelevância, e deve assumir grandes tarefas
Será que as três tarefas de King esgotam o papel do Fundo? A resposta é não. Em primeiro lugar, o fundo continua mantendo um papel de assessor em questões de estabilidade fiscal, monetária e financeira a países que não têm relevância sistêmica. Freqüentemente propõe-se a noção de que esse tipo de assessoria só funciona quando é acompanhada de empréstimos. Isso insinua, porém, que os recipientes não valorizam a assessoria. Em segundo, o abandono de um papel ativo no trato com insolvência e falta de liquidez seria lamentável. O Fundo deveria orientar as partes sobre uma razoável divisão do ônus no caso de um default. Idealmente, o Fundo também deveria oferecer maior compartilhamento de reservas, uma vez que é oneroso para os países se auto-segurarem na escala atual. O investimento de US$ 4,1 bilhões em reservas cambiais em novembro representou uma dádiva para países cujos passivos são mantidos nessas reservas, porém impõe um custo substancial sobre os que neles investem. A formação de um fundo comum em escala suficiente para equacionar outra crise sistêmica, porém, demandaria recursos do FMI em escala muito maior do que provavelmente será acordado. Na prática, portanto, King definiu as tarefas importantes e viáveis. Se o FMI for incumbido de sua implementação, porém, precisará tornar-se confiavelmente independente. Deveríamos, ele sugere, transportar-nos de volta ao conceito original de Keynes, de um FMI sob o controle do diretor-gerente, com a supervisão de diretores executivos em regime puramente temporário. A constante interferência do atual conselho diretor residente subverte a independência. Com a tecnologia de transporte e de comunicação de hoje, um conselho diretor não-residente poderá dar conta do recado. Além disso, sugiro, o diretor-gerente deveria ser escolhido a partir de um grupo global de candidatos para um mandato não-renovável de pelo menos seis anos. A reforma do FMI não esgota a agenda para a estabilidade monetária internacional. Como observa King, a expansão dos grupos "G" - o G-7, o G-20 e assim por diante - tornou-se cancerosa. A maior prioridade é ampliar os encontros dos ministros das Finanças e presidentes de bancos centrais do G-7, para incluir outros países sistemicamente importantes, particularmente a China. Os quadros do FMI também devem ter permissão para fornecer análise e assessoria plenamente independente desse G-7 reformado. Sejamos brutais: o FMI não está apenas à beira da "obscuridade", como sugere King, mas da irrelevância. Grandes tarefas persistem, porém. Mesmo se o seu papel de provedor de empréstimos de última instância estiver pendendo para a dormência, ainda assim poderá orientar o processo decisório nacional, especialmente no fortalecimento da estabilidade global. Para tanto, porém, ele deverá tornar-se uma organização tenaz e independente, disposta e capaz de criticar governos poderosos pública e vigorosamente. Um FMI assim é a última coisa que os seus poderosos detentores de ações desejam agora. Esta iniciativa, porém, também serve aos seus interesses de longo prazo. Eles reconheceram esta lógica progressivamente na criação do sistema de bancos centrais independentes. Eles deveriam reconhecer a mesma lógica na criação de uma fiscalização global verdadeiramente independente.