Título: Doença holandesa ou comércio insuficiente?
Autor: Rubens Penha Cysne
Fonte: Valor Econômico, 23/02/2006, Opinião, p. A14

Brasil ainda tem um coeficiente de abertura externa excessivamente reduzido

A nova discussão da moda é saber se o Brasil está sofrendo de "doença holandesa". O termo tem origem na descoberta de gás natural na Holanda nos anos 60, o que valorizou sua moeda e, segundo alguns, teria sido responsável pela queda de suas exportações. Do ponto de vista técnico, o jargão refere-se a um processo de redução de crescimento gerado pela descoberta de recursos naturais exportáveis que, ao gerarem abundância de divisas externas, valorizariam a taxa de câmbio real e prejudicariam o crescimento e os aportes de tecnologia pelos setores exportadores tradicionais. Argumentam os defensores do novo modismo que a abundância de recursos externos e a conseqüente queda de preço do real têm reduzido ou reduzirão ainda mais o crescimento brasileiro, em função da migração de capital e mão-de-obra dos setores produtores de bens exportáveis, onde os ganhos de produtividade são potencialmente maiores, para os setores produtores de bens não-transacionáveis, onde o uso de mão-de-obra qualificada ou o "learn by doing" não seria tão intenso (e.g., serviços). A receita dada pelos analistas de plantão seria a compra de divisas ou um forte e rápido relaxamento da política de juros pelo Banco Central, de forma a impedir a valorização adicional do real. É importante notar que, conceitualmente, a valorização do câmbio real associada à "doença holandesa" pode se dar de duas maneiras (o câmbio real, e não o nominal, é a variável de interesse). Quando o preço da divisa estrangeira é fixado pelo Banco Central (câmbio fixo) isto se dá através da expansão monetária, decorrente da compra das divisas externas excedentes ao preço estipulado e sem esterilização. Alternativamente, quando o câmbio é flexível, a valorização se dá pela simples queda do valor nominal da divisa estrangeira. Claro que deixar o câmbio flutuar em um ambiente de expansão fiscal e de política de metas de inflação calcada apenas nos juros está longe das condições a que se referem os modelos econômicos ortodoxos quando apontam os ganhos para a economia e sociedade da não-intervenção em preços. Mas daí ao argumento de que o Brasil está sofrendo de "doença holandesa" e que o Banco Central deve intervir na cotação do câmbio para proteger o setor exportador vai uma longa distância. Fixar o câmbio nessas condições apenas troca o meio pelo qual o câmbio real se valoriza: sai a valorização da taxa nominal e entra a inflação interna. O ponto principal a ser notado é que o Brasil tem ainda um coeficiente de abertura externa demasiado reduzido. Vejamos como se situa o Brasil em relação ao resto do mundo e com relação à China e à Índia. O PIB do Brasil representa 1,8% do PIB mundial, ao passo que China e Índia respondem por, respectivamente, 4,4% e 1,6%. A contribuição dos diferentes países ao comércio mundial é, por outro lado, bem mais intensa: a da China é de 6,2% e a da Índia de 1,6%, contra apenas 0,9% do Brasil. Isso se explica porque as importações e exportações da China somam o equivalente a 82% de seu PIB. No caso da Índia, a cifra é de 56%, pouco abaixo da média mundial de 57,2%. No Brasil, a relação é de apenas 29,5% do PIB.

Permitir que os dólares em abundância gerassem uma maior importação de máquinas fomentaria o setor exportador

É ainda interessante notar que, entre os 95 países para os quais há estatísticas, o Brasil é o quarto país de menor relação entre as receitas correntes totais do balanço de pagamentos e o PIB (17%). Cingapura (224%) e Hong Kong (200%) são os primeiros colocados. Uma forma mais adequada de fomentar o setor exportador e o seu contínuo desenvolvimento tecnológico, portanto, seria permitir que os dólares em abundância gerassem uma maior importação de máquinas, equipamentos e tecnologia. O exportador brasileiro beneficiar-se-ia duplamente, sem necessariamente prejudicar o setor de produção de máquinas no Brasil, já que o preço das máquinas no mercado internacional tem subido em dólares. Ele adquiriria meios de produção mais modernos que ajudariam a torná-lo mais competitivo e, em um primeiro momento, contribuiria a diminuir a pressão de apreciação da moeda local. Outros países emergentes (Chile, por exemplo) estão aproveitando a onda internacional favorável na demanda por commodities e na liquidez internacional para fazer exatamente isso. Aqui, o próprio BNDES poderia contribuir, facilitando o financiamento de máquinas por pequenas empresas, que não contam com "supplier credit", i.e., financiamento do país exportador. O alargamento da fronteira tecnológica, ao fomentar o crescimento, reduz o nível dos juros necessários para manter a inflação sob controle, dada uma política fiscal compatível. Uma estratégia bem delineada de inserção no comércio internacional (leia-se, maior valor da soma de importações e exportações em relação ao PIB) não gera efeitos nocivos de longo prazo sobre a balança comercial ou sobre o saldo do balanço de pagamentos em conta corrente. Primeiro, porque a aquisição externa de bens de capital mais modernos majora a competitividade do setor exportador. Segundo porque, como fazem, por exemplo, Cingapura e Hong Kong, parte das importações pode ser diretamente utilizada na produção de bens exportáveis, após a devida incorporação de valor adicionado doméstico. As avaliações de risco país são também positivamente afetadas pela maior inserção externa. Mantido constante ou em elevação o saldo do balanço comercial, como se requer neste tipo de estratégia, majora-se o denominador do coeficiente dívida líquida/exportações, muito utilizado por agências de rating, sem, contudo, modificar-se o numerador.