Título: Tributos, liminares e concorrência
Autor: Celso Fernandes Campilongo
Fonte: Valor Econômico, 23/02/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"Para a análise antitruste, lei tributária ou liminares não são obstáculos a condenações"

Como resultado da alta carga tributária e da luta pela conquista do mercado, empresas buscam vantagens fiscais em municípios ou Estados ou obtêm em juízo benefícios que lhes confiram facilidades competitivas. Leis de duvidosa constitucionalidade e medidas liminares produzem assimetrias entre os competidores que desequilibram as forças econômicas e aniquilam o princípio constitucional da livre concorrência. Leis ou decisões judiciais podem criar obstáculos concorrenciais? Que remédios o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Justiça oferecem aos lesados? Para o direito concorrencial, recurso a tipos jurídicos abertos, flexibilização das formas, orientação consequencialista e sensibilidade aos conceitos econômicos são praxe. Condutas lícitas do prisma contratual - cláusulas de exclusividade e de preferência, por exemplo - podem receber restrições concorrenciais. Nada impede que, em tese, apesar de legais da perspectiva tributária, condutas empresariais amparadas em leis ou liminares sejam questionadas junto ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, em razão de seus potenciais efeitos anticoncorrenciais. O Cade não tem competência para declarar a inconstitucionalidade de leis ou revogar decisões judiciais. Mas não é disso que se trata. Se a conduta de um competidor - mesmo albergada por lei, por ato administrativo ou por decisão judicial - tiver por objeto ou puder produzir os efeitos, ainda que não alcançados, previstos na lei antitruste, poderá caracterizar infração da ordem econômica. A guerra fiscal em torno do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) é exemplo dessa perversão. Não estão em jogo constitucionalidade de leis, juridicidade de atos fiscais da administração ou pertinência de decisões judiciais estranhas ao antitruste. Caso essas medidas (1) limitem, falseiem ou prejudiquem a livre concorrência ou a livre iniciativa; (2) resultem em dominação de mercado relevante; (3) gerem aumento arbitrário de lucros; ou (4) viabilizem exercício abusivo de posição dominante, seus efeitos potenciais serão examinados à luz da Lei n° 8.884, de 1994. Tanto o Cade como o Poder Judiciário analisarão reflexos concorrenciais das condutas - pouco importando se lastreadas ou não por outras normas jurídicas. As violações ao direito da concorrência implicarão em sanções fundadas nos artigos 170 e 173, parágrafo 4º da Constituição Federal e na legislação antitruste. Insista-se: para a análise antitruste, legislação tributária ou liminares judiciais não são obstáculos para condenações.

Comprovar a relação de causalidade entre o benefício e seus efeitos anticompetitivos nem sempre é trivial

Incentivos fiscais afetam a concorrência. A formação de preços é distorcida por ajudas estatais ou pretorianas. Como esses incentivos mascaram o desempenho econômico, inibem a eficiência produtiva e falseiam a competição, a aplicabilidade do direito antitruste à hipótese é total. Comprovar a relação de causalidade entre a legislação ou a decisão liminar que concedeu o benefício e os potenciais efeitos anticompetitivos das condutas decorrentes nem sempre é trivial. Talvez por isso não existam condenações dessas práticas. Gradualmente, com o amadurecimento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e pela gravidade das situações, elas virão. Na União Européia, matéria análoga assumiu, favoravelmente ao direito da concorrência, função de guia das atividades econômicas. No Cade, dependendo das circunstâncias, a solução pode ser bastante célere. Instaurado o problema concorrencial - quando um concorrente obtém o benefício -, é natural que os demais pleiteiem privilégio idêntico. Porém, quer do prisma das eficiências alocativas, quer da perspectiva da estrita legalidade, é mais simples e racional derrubar as regalias do que estendê-las. Há precedentes, na jurisprudência do Cade, de condutas anticoncorrenciais e atos de concentração que, estimulados pelo Poder Executivo ou chancelados pelo Poder Judiciário, redundaram em desconstituição de operação ou aplicação de multas. Vale mencionar um ato de concentração no mercado de álcool que contou com beneplácito do governo e foi desfeito pelo Cade, e um processo administrativo sobre a tarifa de interconexão - Tarifa de Uso de Rede Local (TU-RL). No caso da TU-RL, o Cade reafirmou a tese de que, sem se imiscuir na discussão sobre matéria regulatória, poderia punir agentes regulados que, a pretexto de cumprir as normas setoriais, praticassem atos concorrencialmente abusivos. São situações semelhantes às vantagens fiscais decorrentes de leis ou liminares. A lei antitruste aplica-se, também, às pessoas jurídicas de direito público. Teoricamente, o Estado que concedesse o benefício fiscal causador do desequilíbrio concorrencial seria agente da infração. Porém, diante da isonomia constitucional dos entes públicos, o Cade não tem poder sancionador sobre Estados e municípios, mas poderá solicitar às autoridades competentes ou requerer em juízo (assim como o particular afetado) a imediata cessação da infração. Os lesados por condutas anticoncorrenciais não precisam aguardar manifestação do Cade para pleitear judicialmente cessação de práticas contrárias à ordem econômica. No caso de ofensa à concorrência, a coletividade é titular do bem protegido pela lei. Ainda assim, empresas prejudicadas pelo concorrente que abusou do poder econômico e falseou a competição podem postular pagamento de indenização por perdas e danos sofridos.