Título: Quem o Congresso pensa que o povo é?
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2006, Política, p. A8

O argumento que convenceu os deputados federais a salvar dois de seus colegas da cassação veio de Roberto Brant, exatamente o primeiro a ser absolvido - o outro foi o professor Luizinho. De maneira lapidar, o parlamentar do PFL de Minas Gerais, em discurso aplaudido por quase toda a Casa, advertiu os colegas para que tivessem cuidado com o "monstro da opinião pública" e que prestassem atenção somente no "povo". O recado estava dado: a maioria da população brasileira - em contraposição à elite - sabe que muitos políticos se beneficiam do caixa 2 de campanha e afins, de modo que se Brant fosse cassado, a pena deveria ser estendida à fatia majoritária do Congresso. Antes que setores com maior renda e escolaridade da sociedade e alguns oposicionistas comecem a culpar os pobres, é preciso ressaltar, talvez até gritar, que a responsabilidade dessa pizza é toda da classe política, em particular a congressual. Não há como resistir à paráfrase do velho chavão popular: quem o Congresso pensa que o povo é? A absolvição de Brant e Luizinho é o corolário de um processo desastroso. Ele começa com a descoberta do valerioduto, esquema ilegal de financiamento de campanha inventado pelos tucanos mineiros e sofisticado pelos companheiros petistas paulistas. Estes últimos procuraram obter maioria parlamentar dando recursos para os deputados do "centrão de aluguel" - eterna praga do sistema político brasileiro -, aparentemente para que estes pagassem dívidas da eleição de 2002 e financiassem candidatos (ou eles próprios) no pleito municipal de 2004. Se o esquema foi maior do que esse, os congressistas que participaram das CPIs não conseguiram provar com o devido rigor, seja por conta de incompetência investigativa, seja em razão de uma partidarização com vistas a 2006 que prejudicou a elucidação do episódio. Só que não importa comprovar ou não se houve "mensalão", no sentido lato da palavra. Criar um esquema de financiamento de vários partidos comandado pela legenda que detém o poder maior do país é um escândalo. Pior: como havia membros de outras agremiações partidárias, da base governista e mesmo da oposição, que tinham em algum momento recebido recursos capitaneados por Marcos Valério, ou supostamente de outras fontes de campanha - o caso Furnas será um fantasma ao longo da campanha presidencial -, preferiu-se o jogo da personalização dos culpados, da criação de vilões que seriam punidos para matar a sede de vingança da "opinião pública" - naquele momento, o "povo" ainda não estava na parada. E as figuras de Roberto Jefferson e José Dirceu se adequavam perfeitamente a este figurino e por isso foram exemplarmente cassados. Depois desta catarse, os congressistas foram incapazes de transformar o episódio do valerioduto num ponto de partida de reformulação do sistema político-administrativo do país. Aí está o x da questão. As renúncias de alguns acusados, a multiplicação de denúncias sem que houvesse o devido zelo investigativo - ao contrário, predominava a estratégia do espetáculo -, as manobras parlamentares dos governistas e as absolvições de três deputados, tudo isso é fruto não só do corporativismo parlamentar, mas da falta de uma estratégia da elite política congressual, especialmente a da oposição, para priorizar a reforma das causas. Em vez disso, perseguiu-se um único objetivo: a responsabilização de seus adversários políticos. Como Brant e Luizinho se salvaram com votos do PFL e também do PSDB - provavelmente em menor número -, a "opinião pública" e o "povo" vão duvidar de campanhas eleitorais centradas apenas no tema ético e na denúncia do "mensalão". A sensação de que todos se locupletaram será grande em todos os estratos da sociedade brasileira.

Falta à elite brasileira um projeto republicano

Mas a frase redentora do deputado Roberto Brant e de muitos aqueles que o absolveram alimentou-se de um elemento da conjuntura: o crescimento da popularidade do presidente Lula. Afinal, se ele fora tratado como o "chefe da gangue" e passara incólume a esta acusação, é porque o "povo" não foi tão atingido assim pelo escândalo do valerioduto. A indignação, seguindo esta linha de raciocínio, seria coisa da "opinião pública". Esta argumentação é típica de uma elite política sem um projeto republicano para o país. Há um paradoxo importante na concepção política defendida por Brant: ela supõe que os parlamentares devem pensar na "maioria" independentemente da maneira como organizam esta ação. É como se dissesse: "se o povo quer pão e circo, que isso seja dado a eles". O deputado, quadro melhor do que a média dos congressistas, imagina que a vontade popular guia os políticos como se estes não tivessem idéias, projetos e interesses próprios. Trata-se de uma visão enviesada da democracia, pois a qualidade desta depende sim do respeito às demandas populares, mas precisa também de líderes capazes de mobilizar a população e defender visões de mundo, por vezes até baseadas em propostas impopulares em determinada situação. Dito de outro modo: a boa política democrática vai além dos votos. Ela depende fundamentalmente de valores, pois, do contrário, a popularidade de Hitler já definiria sua legitimidade. O deputado Roberto Brant e seus aliados multipartidários agiram movidos pela crença de que o "povo" brasileiro, hoje, acha que todos os "políticos são iguais em relação ao caixa dois". Porém, enganam-se ao imaginar que os mais pobres e com pouca escolaridade aprovam estes "pequenos delitos". O "populacho" reprova isso e fica cada vez mais enojado da prática das elites. Por isso, pode em alguns casos repreender a classe política pelo voto, em outros pode levar em conta outros fatores - como Lula já percebera, agradecendo a oposição por sua incompetência investigatória. Independentemente disso, o certo é que todo este processo político das CPIs, incluindo a última absolvição de dois parlamentares, não favoreceu a mobilização social, contribuindo para aumentar o fosso entre a tal da "opinião pública" e o "povo", já que os "de cima" têm uma posição privilegiada para defender os seus interesses. No fundo, Brant não gosta daquilo que chama de "opinião pública" porque ela, certa ou errada, procura se mobilizar para fiscalizar o poder, enquanto o deputado mineiro admira o "povo" quando este só se manifesta no dia da eleição. O silêncio durante todo o restante do mandato dos representantes é o que os congressistas esperam da população, para que, secretamente, possam se autoproteger daqueles que sonham com a implantação de uma verdadeira república no Brasil.