Título: Explorar as minas da Bolívia é um outro desafio para Morales
Autor: Fiona Smith
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2006, Internacional, p. A10

Além do Gás Setor perfaz 20% das exportações, mas situação política segura investimentos

Os mineradores oferecem os corações ainda pulsantes de quatro lhamas recém-sacrificadas a uma estátua da divindade diabólica El Tío, que eles acreditam lhes trazer proteção e boa sorte quando devidamente respeitada. El Tío, contudo, não foi de ajuda para Demetrio Arancibia, um mineiro que morreu um dia antes, ao despencar quase 300 metros na mesma mina de estanho e prata onde os colegas fizeram a oferenda de carnaval. Arancibia caiu do elevador da mina, que tem grades baixas e não tem amarras de segurança. Tais acidentes não são incomuns. Com pouco ou nenhuma supervisão do governo sobre o setor, não é de surpreender que os mineiros recorram a El Tío em busca de ajuda. O arriscado trabalho desses homens deu à Bolívia 20% do total de US$ 2,7 bilhões de exportações no ano passado, receita que pode crescer se o presidente Evo Morales tiver sucesso em sua promessa de garantir parte da riqueza natural do país aos cidadãos, cuja maioria vive abaixo da linha da pobreza. A Bolívia ostenta a segunda maior reserva de gás natural do continente e é rica em metais, como zinco, prata e estanho. A esperança do país está depositada nesses minerais. O banco central boliviano prevê que o PIB crescerá 4,1% este ano, em grande parte graças aos projetos de mineração de zinco e prata que entrarão em funcionamento. Os preços do zinco e prata vêm aumentando nos últimos anos. A prata valorizou-se 39,5% entre 1995 e 2005, para US$ 7,24 por onça troy. O zinco subiu 30,5% no mesmo período, para US$ 0,61 por libra-peso. Embora até agora Morales tenha se centrado nas negociações para obter mais benefícios para o país nos contratos de gás e petróleo com as empresas estrangeiras, o presidente também jogou o setor de mineração na incerteza ao adiar o processo de ofertas para o desenvolvimento de uma mina que poderia ter as maiores reservas de ferro do mundo, cerda de 44 bilhões de toneladas. A mina Mutun, perto da fronteira com o Brasil, ainda não está produzindo, mas poderia render ao país pelo menos US$ 250 milhões em exportações anuais. E com a grande oferta de gás natural para energia elétrica no país, a mina também poderia tornar a Bolívia um importante produtor de aço. Morales está sob pressão para obter um acordo com alguma mineradora estrangeira para desenvolver a mina. Entre os possíveis interessados estão a Mittal Steel, da Holanda; a Techint, da Argentina; a anglo-australiana Rio Tinto; e a brasileira Companhia Vale do Rio Doce. Hoje as empresas brasileiras não têm participação importante no setor de mineração boliviano. Embora um acordo possa trazer US$ 500 milhões em investimentos, ampliar as exportações e encorajar novos projetos, pouco fará pela maioria dos 50 mil mineradores bolivianos. Cerca de 90% deles trabalham em minas abandonadas pelo Estado, mas ainda de sua propriedade, e que agora são administradas como cooperativas. Produzem 42% do valor total de minerais extraídos no país. Tais minas não devem se beneficiar muito de investimentos em tecnologia de empresas privadas do setor. Morales diz ter suspendido o processo de leilão da Mutun para ter garantias de mais tecnologia e industrialização. O projeto já havia sido adiado pelo ex-presidente interino Eduardo Rodríguez. Depois de assumir o cargo, em janeiro, Morales lançou decreto adiando o processo por mais 90 dias. Os atrasos servem apenas para deixar os já ansiosos investidores ainda mais inseguros em investir na Bolívia, diz o geólogo e consultor de mineração Charles Bruce, que trabalha na Bolívia há 46 anos. "Era um caos quando eu cheguei, e não vejo muita melhora agora. O problema com a Bolívia é que sempre há constantes ameaças: de que eles vão confiscar as minas, de que vão remodelar a Comibol [mineradora estatal boliviana], de que aumentarão os impostos." O ministro de mineração, Walter Villarroel, pretende envolver a Comibol em todas as fases da cadeia de produção de minérios, além de elevar impostos, hoje em torno de 35%, sobre as grandes operações de minérios na Bolívia. Villarroel, que foi minerador das cooperativas por 20 anos, disse que as minas serão taxadas de acordo com sua produção, diferentemente das regras atuais, em que "todas as minas pagam o mesmo, independente do tamanho." As propostas de Villarroel, porém, podem desencorajar novos investimentos. E isso, combinado com a carência de lei e ordem, pode tornar impraticável um empreendimento em mineração, que já é algo arriscado, observa Bruce. Apenas alguns grandes projetos foram adiante nos últimos anos, embora a Bolívia seja uma potência da mineração há séculos. A Espanha sustentou grande parte de seu império colonial com a prata extraída de uma mina na cidade de Potosí - tão rica que, após 500 anos de extração, ainda está em funcionamento. A Bolívia foi um dos principais produtores de estanho no Século XX e, embora o setor tenha auxiliado a economia, as condições de trabalho dos mineradores pouco melhoraram desde os tempos de colônia. Com o grande descontentamento social no país, os mineiros lideraram uma revolução em 1952 que estatizou as minas, antes controladas por poucos magnatas. As minas ficaram estatizadas até 1985, quando a queda nos preços mundiais do estanho tornou as exportações do minério deficitárias. A Comibol fechou a maioria das minas durante o período, deixando mais de 20 mil mineiros sem trabalho. Sandro Sandoval, mineiro há 35 anos em Oruro, não se interessa pelos planos de Villarroel para a Comibol. Extraindo prata, chumbo e antimônio na mina San José, Sandoval diz que quer ver investimentos para melhorar a tecnologia e a segurança, mas sem interferência de empresas privadas ou do governo. O governo já abandonou a mina. "Estamos mostrando a eles que ela ainda tem vida e continuaremos lutando por ela", afirmou. Depois de caminhar quase dois quilômetros por baixos túneis com colunas quebradiças de madeira, Sandoval e seu grupo de 17 mineradores chegam ao veio de prata e chumbo, a cerca de 200 metros de profundidade. Após turnos de trabalho de 12 a 17 horas, eles carregam sacos de 50 quilos de volta ao elevador da mina, não esquecendo de deixar álcool ou algumas folhas de coca quando passam pela estátua de El Tío. Cada membro do grupo ganha cerca de US$ 8 por dia, bem acima da média US$ 3 dos demais mineiros bolivianos. O grupo juntou recursos para comprar uma escavadora, que lhes fará economizar horas de trabalho. É o único sinal de modernidade na mina. Quando o elevador que iria buscar os mineiros não chegou, Sandoval ligou ao escritório de um telefone tão velho que funciona a manivela. Ninguém respondeu, então dois mineradores escalaram 200 metros por um estreito túnel até a superfície para alertar o operador do elevador. Um dos colegas de Sandoval, Filoberto Saavedra, 35 anos, diz que a mineração é um trabalho árduo, mas que é um dos poucos empregos garantidos nos áridos altiplanos bolivianos. "O governo nos dá apoio, mas é mínimo, e eles não o fazem a menos que falemos, gritemos e saiamos nas ruas. Eles nos discriminam, nos esquecem", diz Saavedra.