Título: Saúde das empresas descola da de seus países de origem
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/02/2006, Internacional, p. A12
Globalização O que é bom para a GM pode não ser mais bom para os EUA
"Nada contribui tanto para a prosperidade e felicidade de um país quanto lucros elevados", disse o economista britânico David Ricardo no começo do Século XIX. Hoje, porém, os lucros empresariais estão em crescimento acelerado em economias como a alemã, estagnadas há tempo. E praticamente em todos os países, mesmo com a disparada nos lucros, a renda real dos trabalhadores têm se mantido inalterada ou está até mesmo caindo. Ou seja, a velha relação entre prosperidade empresarial e nacional foi rompida. Essa observação tem duas implicações. Em primeiro lugar, como destacam Stephen King e Janet Henry, ambos do banco HSBC, as empresas já não estão mais amarradas às condições econômicas e políticas dos países onde são negociadas em bolsa. As empresas, na Europa, estão tendo lucros respeitáveis, mais em sintonia com o desempenho da robusta economia mundial do que com a de seus esclerosados países de origem. Nos últimos dois anos, os rendimentos por ação de grandes empresas negociadas em bolsas subiram mais de 100% em Alemanha, 50% na França, 70% no Japão e 35% nos EUA. Não surpreende que os mercados acionários europeu e japonês tenham passado à frente das bolsas americanas, apesar do crescimento mais rápido do Produto Interno Bruto (PIB) americano. Em segundo lugar, e mais preocupante, o sucesso das empresas já não assegura a prosperidade das economias nacionais e, mais particularmente, dos trabalhadores nacionais. Maior lucratividade supostamente incentiva as empresas a investir mais, oferecer salários melhores e contratar mais trabalhadores. Mas, apesar de a participação dos lucros na renda nacional das economias do G-7 estar perto de um recorde histórico, os investimentos empresariais têm sido excepcionalmente fracos nos últimos anos. As empresas têm relutado em ampliar contratações e salários como faziam em recuperações anteriores. Nos EUA, uma fatia maior da alta na renda nacional foi para os lucros do que em qualquer recuperação desde 1945. A principal razão de a saúde das empresas ter descolado da saúde da economia de seus países é que as grandes companhias tornaram-se mais internacionais. As 40 maiores multinacionais do mundo empregam hoje, em média, 55% de seu pessoal em países estrangeiros, onde geram 59% de sua receita. Segundo análise de Patrick Artus, economista-chefe do IXIS, um banco de investimento francês, só 53% do pessoal das empresas que compõem o índice DAX-30 da Bolsa de Frankfurt está na Alemanha, e apenas um terço do faturamento total dessas empresas vêm de lá. Apenas 43% de todos os empregos em empresas que compõem o índice CAC-40 da Bolsa de Paris estão na França. Uma vez que os lucros dessas empresas dependem de suas operações pelo mundo, não é de surpreender que a prosperidade empresarial não tenha estimulado suas economias "natais". As companhias americanas e japonesas permanecem mais vinculadas a seus mercados domésticos. Apenas 20% do faturamento das empresas que compõem o índice Nikkei da Bolsa de Tóquio vem do exterior. As vendas externas das companhias que compõem o índice americano S&P 500 representam apenas 25% de seu total. Apesar disso, entre as 50 maiores empresas esse número é maior, cerca de 40%. O velho bordão "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA" já não soa verdadeiro: mais de um terço dos funcionários da GM trabalham no exterior. Se uma grande parte do surto de lucratividade provém de operações no exterior, é menos provável que esse lucro seja usado para financiar investimentos ou geração adicional de empregos nos países de origem. Se as companhias raciocinarem que o passado recente é um balizamento razoável para o futuro imediato, elas provavelmente aplicarão seu lucro extra em investimentos adicionais no exterior. Como alternativa, elas poderão recomprar suas ações ou saldar suas dívidas. A globalização também fez a equilíbrio de forças no mercado de trabalho pender a favor das empresas. Com a globalização, as empresas ganham acesso a mão-de-obra barata no exterior; e a ameaça de que elas transfiram mais produção para outros países também contribui para um arrocho salarial em seus mercados domésticos. Essa é uma razão pela qual, apesar de lucros recordes, os salários reais na Alemanha caíram ao longo dos últimos dois anos. Isso, por sua vez, comprimiu o consumo interno e, portanto, o crescimento do PIB. Os trabalhadores ainda podem se beneficiar da alta nos lucros, caso possuam ações, seja diretamente ou por intermédio de fundos de pensão. Existem razões para acreditar que os preços das ações de grandes companhias negociadas em bolsa terão desempenho melhor do que as economias de seus países de origem. A teoria econômica sustenta, e a experiência histórica sugere, que, no longo prazo, os lucros crescem ao mesmo ritmo que o PIB. Mas, se a lucratividade das grandes empresas está cada vez mais vinculada à produção mundial, então o lucro das companhias com ações negociadas em bolsas de países desenvolvidos poderá crescer mais rapidamente do que o PIB local por muitos anos. Nos EUA, os ganhos com ações tiveram um papel importante para sustentar o gasto das famílias ao longo da década passada. Mas Artus se preocupante com que os trabalhadores na Europa continental estejam perdendo, pois uma proporção alta de ações está em mãos de estrangeiros: o número chega a 35% na França e 16% na Alemanha. Isso se deve em parte ao papel secundário desempenhado por investidores institucionais, como fundos de pensão na Europa, em comparação com os EUA. Se os lucros (e, portanto, a remuneração dos executivos) seguirem em sua alegre ciranda, enquanto os salários reais dos empregados comuns ficam inalterados e seus planos de saúde e aposentadorias vão sendo minados, seria razoável os trabalhadores esperarem que seus governos façam alguma coisa para reduzir a disparidade. Não é difícil pensar em idéias que seriam populares: impostos mais altos sobre lucros, restrições a investimentos no exterior, barreiras contra importações ou dificultar a demissão de trabalhadores. O problema é que, numa economia globalizada, essas medidas seriam também suicida. As empresas simplesmente transfeririam suas operações para países mais amistosos. Uma maneira mais promissora de permitir que os trabalhadores compartilhem da prosperidade empresarial é incentivar as empresas a implantar esquemas de participação dos empregados nos seus lucros. Mas talvez a coisa mais útil que os governos podem fazer é assegurar que os consumidores (ou seja, trabalhadores) beneficiem-se do barateamento das mercadorias resultante da migração da produção para países de baixo custo. Os preços de bens de consumo caíram muito mais nos EUA, nos últimos anos, do que nos países da zona do euro, onde os varejistas estão protegidos de competição e não repassaram as reduções de custos. Mais competição na Europa permitiria aos trabalhadores compartilhar dos ganhos da globalização por meio de preços mais baixos. A lição clara é que políticas que visem punir as empresas serão incapazes de distribuir as recompensas de sucesso empresarial na economia como um todo. A única maneira segura de elevar a prosperidade econômica nacional é fazer os mercados de mão-de-obra e de produtos funcionarem mais eficientemente e melhorar o ensino, para tornar o país de origem uma base de produção mais atraente. A crescente internacionalização das empresas também torna absurda a paranóia, tanto nos EUA como na Europa, contra o fato de estrangeiros comprarem "nossas" companhias. Sempre foi tolice governos barrarem aquisições, por estrangeiros, que façam sentido do ponto de vista econômico. É hoje ainda mais tolo. Quando mais de metade da mão-de-obra de muitas grandes companhias está localizada no exterior, a distinção entre empresas estrangeiras e nacionais torna-se cada vez mais nebulosa. Houve um surto de indignação patriótica na França contra a proposta hostil de compra da Arcelor pela indiana Mittal, uma gigante mundial de siderurgia. Mas, embora a Arcelor faça parte do índice CAC-40 e seja considerada na França como uma jóia empresarial nacional, ela é, na verdade, produto de uma tríplice fusão européia. A Arcelor é registrada em Luxemburgo e só um terço de seus empregados estão na França. No futuro, a noção de "nossas" empresas se tornará cada vez mais elusiva.