Título: Ajudar pelo desenvolvimento
Autor: Jeffrey D. Sachs
Fonte: Valor Econômico, 01/03/2006, Opinião, p. A11

Corte da assistência dos países ricos aos pobres deveria ser uma prática de última instância

Quase diariamente, os Estados Unidos e a Europa acenam com ameaças de impor sanções econômicas ou eliminar programas de assistência para o desenvolvimento a menos que algum governo vulnerável aceite as suas críticas. As ameaças mais recentes foram dirigidas ao novo governo liderado pelo Hamas na Palestina. Outros exemplos recentes incluem ameaças ao Chade, Etiópia, Haiti, Quênia, Bolívia, Uganda e sanções de longa data impostas contra Mianmar. Estas táticas são equivocadas. O uso de ajuda para desenvolvimento como um porrete político apenas aprofunda o sofrimento de países empobrecidos e instáveis, sem produzir os objetivos políticos pretendidos pelos doadores. Para entender o porquê disso, é necessário adotar uma visão de longo prazo da geopolítica, particularmente o declínio gradual da supremacia européia e dos EUA. A tecnologia e o desenvolvimento econômico estão se alastrando por toda a Ásia e o mundo em desenvolvimento, enquanto a disseminação da alfabetização e da consciência política ao longo do século passado fez a autodeterminação nacional tornar-se de longe a ideologia predominante da nossa era, resultando no fim do colonialismo. O nacionalismo continua produzindo "anticorpos" políticos poderosos às intromissões americanas e européias nos assuntos internos de outros países. A incapacidade de entender essa questão está por trás dos repetidos desastres da política externa dos EUA no Oriente Médio, pelo menos desde a derrubada do xá do Irã em 1979. Os EUA continuam ingenuamente encarando o Oriente Médio como um objeto de manipulação, seja por causa do petróleo ou por outros motivos. No Oriente Médio, a guerra no Iraque é amplamente interpretada como uma guerra pelo controle americano do petróleo do Golfo Pérsico - uma visão bastante plausível, considerando-se o que sabemos sobre as verdadeiras origens da guerra. Só uma incrível ingenuidade e arrogância poderiam fazer os líderes dos EUA (e do Reino Unido) acreditarem que as tropas ocidentais seriam saudadas como libertadoras em vez de ocupadoras. A manipulação política da ajuda externa reflete essa mesma arrogância. Mesmo num momento em que os EUA defendem retoricamente a democracia no Oriente Médio, sua primeira reação à vitória do Hamas foi exigir que o governo recém-eleito devolvesse US$ 50 milhões em ajuda dos EUA. As doutrinas do Hamas são realmente inaceitáveis para a paz duradoura, como até mesmo alguns países árabes, como o Egito, já deixaram claro. Reduzir a ajuda, porém, poderá aumentar a agitação em vez de conduzir a um acordo aceitável de longo prazo entre Israel e a Palestina. Um governo palestino recém-eleito deveria ser tratado, pelo menos inicialmente, com legitimidade. Mais tarde, se ele se comportar impropriamente, promovendo o terror, as políticas podem mudar. Um corte da ajuda deveria ser uma prática de última instância, não uma arremetida inicial.

Uso de auxílio como porrete político apenas aprofunda o sofrimento de países pobres, sem levar aos objetivos pretendidos pelos doadores

Cortes na ajuda geralmente não conseguem produzir os resultados políticos desejados por pelo menos dois motivos. Primeiro, que os EUA ou os países europeus não têm muito prestígio como mediadores legítimos de "boa governança". Os países ricos há muito têm se intrometido, freqüentemente com suas próprias corrupções e incompetências, nos assuntos internos de países que agora repreendem. Os EUA pregam "boa governança" na sombra de uma guerra não provocada, de escândalos de corrupção parlamentares e de benefícios inesperados para empresas politicamente bem-conectadas, como a Halliburton. Segundo, as ameaças dos EUA e da Europa de cortar a ajuda ou impor sanções são de qualquer forma débeis demais para obterem algum resultado além de minar países já instáveis e empobrecidos. Consideremos as ameaças recentes de cortar a ajuda à Etiópia, que está na escala de US$ 15 por etíope ao ano - cuja maioria na verdade é paga a consultorias americanas e européias. É pura fantasia acreditar que a ameaça de um corte na ajuda permitirá aos EUA e à Europa influenciar os rumos da complexa política interna etíope. Um corte na ajuda à Etiópia, contudo, poderia causar uma grande quantidade de mortes nesse povo empobrecido, que carece de medicamentos, sementes melhoradas e fertilizantes. Realmente, o histórico de ajudas intermitentes é deplorável. A ajuda intermitente deixou o Haiti numa espiral decrescente consumada. As sanções de uma década impostas contra Mianmar não reconduziram Aung San Suu Kyi ao poder, porém, aprofundaram a carga de enfermidades e a pobreza extrema naquele país. As ameaças de corte na ajuda ao Quênia, Chade e outros lugares poderão piorar situações já desesperadamente ruins. Nada disso vem sugerir que os EUA e a Europa devam aceitar qualquer iniciativa de qualquer ditador corrupto. O realismo em questões econômicas internacionais, porém, implica aceitar que a assistência oficial de desenvolvimento só poderá ajudar a alcançar os objetivos políticos amplos de estabilidade e democracia no longo prazo. O caminho mais confiável rumo à democracia estável é progresso econômico justo e robusto ao longo de um prolongado período de tempo. O parâmetro determinante para fornecer assistência oficial para desenvolvimento dependerá, portanto, de determinar se a ajuda internacional promove desenvolvimento econômico na prática. Nessa condição, ela precisa ser confiável, previsível e voltada para as necessidades de desenvolvimento, de forma que possa ser monitorada, medida e avaliada. A ajuda pode ser monitorada e medida? Estará sendo furtada? Estará apoiando necessidades reais de desenvolvimento, como produzir mais alimentos, combater doenças ou construindo infra-estrutura de transporte, energia e comunicações? Se a ajuda para o desenvolvimento pode ser dirigida para necessidades reais, então ela deve ser entregue a países pobres e instáveis, sabendo que salvará vidas, melhorará o desempenho econômico e, portanto, que melhorará as perspectivas de longo prazo para a democracia e boa governança.