Título: As Farc entre nós
Autor: Edson Luiz
Fonte: Correio Braziliense, 24/05/2010, Mundo, p. 16

Envolvimento da guerrilha no tráfico de drogas na região amazônica preocupa autoridades de segurança

Depois da prisão, no início do mês, de José Samuel Sanchez, as autoridades brasileiras não têm mais dúvidas de que a presença de integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) no Brasil é uma realidade. Apesar de setores de segurança do país acreditarem que o número de pessoas relacionadas à guerrilha seja pequeno, a preocupação está no fato de que a maioria delas está ligada ao tráfico de drogas. Com Sanchez, a Polícia Federal apreendeu 45kg de cocaína, mas o colombiano tinha estrutura para fazer grandes carregamentos de até 300kg de pó.

O traficante foi preso durante a Operação Rota Solimões, desencadeada pela Polícia Federal ao longo do rio do mesmo nome, no Amazonas. Sanchez tinha uma estrutura que poderia se comunicar com as Farc a qualquer momento, a partir da cidade de Tefé. Além disso, apesar de não ser um elemento da cúpula da organização, era o responsável pela logística da facção, e comandava vários elementos do grupo no Brasil. Quando foi capturado pela Polícia Federal, o traficante estava acompanhado de outras sete pessoas, sendo quatro brasileiros e três colombianos.

Para as autoridades brasileiras, a prisão de um integrante das Farc, ligado ao tráfico de drogas, não foi uma novidade. Ele não foi o primeiro, existem outros, não temos dúvida disso, afirma o delegado Sérgio Fontes, superintendente da PF no Amazonas, e um dos especialistas em tráfico de drogas na região. O mais surpreendente, segundo investigadores da Polícia Federal, é que a organização guerrilheira não estaria ingressando cocaína apenas pelo estado do Amazonas, mas também por outros, como Roraima e Acre, utilizando-se de mulas ou de outras facções, como o grupo terrorista peruano, Sendero Luminoso, que ressurgiu após de praticamente dizimado há alguns anos.

Estrutura Sérgio Fontes ressalta que Sanchez não dispunha de bases que poderiam dar suporte às Farc no Brasil, mas admite que ele mantinha equipamentos de comunicação, com torres que permitiriam fazer contatos entre Tefé, Manaus onde ele morava e a selva colombiana, ocupada pela guerrilha, principalmente nas imediações do Rio Caquetá, primeira frente da organização. No Brasil, o grupo age por meio de intermediários, como Sanchez. Há os prepostos na região, afirma o delegado.

O tráfico da cocaína vinda da região de Barrancominas, controlada pelas Farc, não é feito apenas pelos meios convencionais, como as mulas e grandes carregamentos por via aérea ou marítima. Com a prisão de Sanchez, a Polícia Federal descobriu que os negócios são também dissimulados. O traficante mantinha um frigorífico de importação e exportação de pescado para fazer o transporte da droga. Apesar de apreender apenas 46kg, a PF tinha informações de que uma quantidade entre 200kg e 300kg de pó estariam a caminho do Brasil, e tinha como destino final os Estados Unidos e a Europa.

As investigações da Polícia Federal em torno de Sanchez confirmaram que a presença das Farc no Brasil é antiga. A atuação, com certeza, existe desde a década passada, afirma Fontes. O traficante, por exemplo, estava há pelo menos quatro anos em território brasileiro. Segundo um integrante da área militar, a fronteira aberta entre os dois países não permite uma fiscalização mais eficiente. Mesmo assim, o Exército está reforçando seus contingentes na divisa com a Colômbia, principalmente na região conhecida como Cabeça do Cachorro, em São Gabriel da Cachoeira.

O governo colombiano já enviou documentos à Polícia Federal brasileira pedindo informações sobre a prisão de Sanchez e de outras sete pessoas. Esse é o passo inicial para o processo de extradição. Se isso acontecer, será o terceiro caso do tipo envolvendo traficantes colombianos presos no país. Em 2008, foi preso e extraditado para os Estados Unidos, Juan Carlos Ramirez Abadia. Este ano, foi detido Nestor Caro Chaparro. Os dois são considerados líderes de cartéis em seus países e estavam sendo procurados pelas autoridades norte-americanas.

Memória

Interesse em comum

Silvio Queiroz

O conflito armado colombiano frequenta os debates sobre segurança nacional no Brasil pelo menos desde 1998, quando a guerrilha das Farc ocupou por alguns dias a cidade de Mitú, uma acanhada capital provincial próxima à fronteira. Impedido de enviar tropas por avião, por falta de onde pousá-lo, o governo colombiano recorreu à pista de uma base militar brasileira. A represália não se fez esperar, e o Exército Brasileiro sofreu baixas em escaramuças com os rebeldes.

A essa altura, as Farc impunham sucessivos reveses às tropas oficiais, debilitadas e desmoralizadas no fim do mandato do presidente Ernesto Samper, marginalizado pelos EUA por ter recebido cheques do Cartel de Cali para sua campanha eleitoral. E foi com a guerrilha armando o cerco a Bogotá, sem falar na presença ostensiva que chegou a manter em Medellín, que o sucessor de Samper, Andrés Pastrana, iniciou um processo de paz. As discussões se desenrolaram entre 1999 e 2002, com apoio de um grupo de países amigos que o Brasil não chegou a integrar.

Foi nessa fase do conflito, em abril de 2001, que o Exército colombiano capturou na selva, durante operação contra uma frente guerrilheira que na prática patrulhava a fronteira com o Brasil na chamada Cabeça do Cachorro, o traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar. Além de ter se tornado operador do tráfico internacional e assimilado o know-how do refino de cocaína, Beira-Mar havia se tornado fornecedor de armas para o comandante das Farc conhecido como Negro Acácio, morto em bombardeio em 2007.

Enterrado o diálogo com as Farc, Pastrana foi sucedido em 2002 por Álvaro Uribe, que deixará a Casa de Nariño em agosto próximo. Uribe, turbinado pelos dólares do Plano Colômbia, assinado pelo antecessor, não demorou a perceber a nova realidade decorrente do 11 de setembro de 2001: afinado com George W. Bush, o presidente colombiano enquadrou o conflito com as Farc nos marcos da guerra ao terror. No fim de 2008, antes que Bush desse lugar a Barack Obama, Colômbia e EUA acertaram os termos de um acordo pelo qual tropas americanas teriam acesso operacional a bases militares colombianas.

O acerto esfriou as relações de Uribe com o colega Luiz Inácio Lula da Silva justamente quando começava a entrar em vigor um conjunto de acordos assinados entre os dois incluindo um do qual também o Peru é signatário para reforçar a cooperação na fronteira. As cláusulas incluem troca de informações de inteligência, operações conjuntas e até mesmo o compromisso de ajudar na perseguição de suspeitos. Sem falar no convencimento da população fronteiriça para que ajude a rastrear os movimentos de grupos armados ilegais.

Com base nesses acordos, aviões militares dos dois países já realizaram exercícios conjuntos de patrulhamento a partir de Tabatinga (AM) e da cidade-gêmea colombiana de Letícia. A recente prisão, em Manaus, de um colombiano apontado como integrante do esquema logístico das Farc sugere que, a despeito da divergência pública entre Lula e Uribe quanto à cessão das bases colombianas para os EUA, o interesse imediato de conter o tráfico de armas e drogas nos 1.600km de fronteira continua prevalecendo nas relações entre os dois vizinhos.