Título: A ciranda da isonomia
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 03/03/2006, Brasil, p. A2

O servidor público está patrocinando uma corrida pela isonomia salarial. A greve dos Procuradores da Fazenda Nacional desde 13 de fevereiro, em busca de "equiparação salarial progressiva" com os procuradores da República, vinculados ao Ministério Público Federal, é só um exemplo da batalha que foi aberta pela mudança do teto salarial do funcionalismo. Os procuradores da Fazenda querem a equiparação para elevar o salário bruto dos atuais R$ 8 mil para R$ 24,5 mil. No ano passado, o governo sancionou a elevação do teto de R$ 19,115 mil para R$ 21,5 mil - equivalente ao maior salário do Supremo Tribunal Federal (STF). Em janeiro o teto dos vencimentos do Judiciário e dos cerca de 30 mil funcionários do Executivo (que têm incorporados aos seus salários vantagens adquiridas no tempo que estouram o limite ), subiu para R$ 24, 5 mil. Isso abriu as portas para que a busca de equiparação seja, hoje, a principal bandeira das carreiras organizadas do funcionalismo público, sobretudo as que não tem similaridade no mercado privado. As negociações salariais, assim, não se pautam mais pela correção da inflação ou ganhos de produtividade. Somente agora pelo menos quatro carreiras estão nessa briga: a da Advocacia Geral da União (AGU), da Defensoria Pública, Procuradoria da Fazenda Nacional e Procuradoria do Banco Central. Os delegados de polícia, carreira que também exige habilitação em direito, estão na mesma situação. Concedida a isonomia, o efeito cascata é imediato, já que o salário da cúpula pauta o dos escalões inferiores. Entre 1995 e 2005 a despesa de pessoal cresceu 159,37% enquanto o IPCA acumulou 103,8%. A estimativa original para este ano é que a folha alcance R$ 108,64 bilhões. Diante da promessa do governo de que nenhum funcionário encerrará 2006 sem ter tido pelo menos a correção da variação do IPCA durante a gestão Lula (estimada em 29%), essa cifra subirá R$ 3,77 bilhões. Na falta de uma política geral, com parâmetros objetivos que regulem os níveis de salários e as negociações em todo o setor público, cada um dos poderes faz o que bem entende. Há poucos dias foi anunciado um concurso para procurador geral do trabalho com salário inicial de R$ 14.348,00. Muito superior, assim, ao salário de fim de carreira dos procuradores da Fazenda Nacional, que é de R$ 9.822,85. Não raro, os contenciosos nessa área vão parar na justiça, por absoluta falta de justificativa para práticas arbitrárias. No último concurso patrocinado pela Câmara dos Deputados para analista legislativo-técnico em comunicação social, os primeiros classificados entraram ganhando um salário bruto (incluindo hora extra, auxílio alimentação, etc) de cerca de R$ 6.500,00. Pouco tempo depois o Senado chamou os concursados que não haviam sido convocados pela Câmara para ganharem praticamente o dobro, cerca de R$ 12 mil. O Ministério Público entrou com uma ação para que os primeiros colocados, hoje trabalhando na Câmara, possam ter o direito de escolha (se querem ir para o Senado para receber quase o dobro).

Falta um ordenamento jurídico para as demandas

As disparidades salariais entre os três poderes são gritantes, acirram os conflitos intra-setor público, insuflam as greves e criam um ambiente para decisões discricionárias. As discrepâncias se estendem também às verbas indenizatórias, como auxílio-refeição, diárias e planos de saúde, entre outras. Como cada poder cria sua própria política, os funcionários dos tribunais recebem R$ 600 por mês de auxílio-refeição. No Legislativo, os funcionários recebem R$ 498 e os servidores do executivo, R$ 161,99. No topo, a estrutura mantém-se desigual. Enquanto um ministro do STF recebe R$ 24.500 de salário e ainda tem direito ao auxílio-paletó de cerca de R$ 3 mil, entre vários outros benefícios, o presidente da República e os ministros de Estado ganham R$ 8.885,48 e R$ 8.362,80, respectivamente. Os parlamentares recebem, de salário, R$ 12.700 e um dos receios dos administradores das finanças públicas é que deputados e senadores também reivindiquem o recebimento do teto salarial de R$ 24.500. No Judiciário, a guerra aberta contra o nepotismo apenas começou a debulhar um arraigado arcabouço de privilégios. A rigor, não se sabe qual a estrutura salarial que vigora nos tribunais e no Ministério Público. Sabe-se apenas que a média salarial nessa área é pouco mais do que o triplo da média do poder Executivo. Ou seja, uma média salarial de R$ 12,5 mil, que no Legislativo cai para R$ 10,8 mil e no Executivo, para R$ 3,7 mil. A despeito do parágrafo 6 da emenda constitucional 19 determinar que os três Poderes publiquem todo ano os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos públicos, somente o Executivo faz essa prestação de contas. Agora, o Conselho Nacional de Justiça quer definir o que é o teto salarial para todo o Judiciário. Embora o teto de R$ 24.500,00 esteja estabelecido, o CNJ pretende editar uma resolução definindo as regras que vão limitar os salários de desembargadores, juízes e servidores daquele Poder. Como não há uma regra única, várias são as brechas abertas para ultrapassar aquele limite. Dados do STF indicam que o regime atual permite 40 tipos diferentes de gratificações, representações ou adicionais aos vencimentos dos magistrados. Para dar um mínimo de ordem nas demandas por remuneração no setor público faltam, assim, um ordenamento jurídico para disciplinar a política salarial dos três Poderes e uma lei que regulamente o direito de greve, que está sendo aguardada desde a Constituição de 1988.