Título: Cotas universitárias: há alternativas melhores
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 03/03/2006, Opinião, p. A14

Aconteceu em Travessão, pequena localidade no entroncamento entre a BA-001 e a BR-101. Mas não foi a primeira vez, nem com certeza será a última. O rapaz estava ali vendendo amendoim, naqueles saquinhos plásticos que as crianças gostam de depois encher e estourar para ver quem faz mais barulho. Tinha jeito de estar ali há horas e de ali comparecer todos os dias, com a mesma caixa, em busca dos motoristas que paravam para abastecer de combustível seus carros e caminhões, fugindo dos buracos na estrada. A sua inteligência saltava aos olhos de quem parava para prestar atenção. Tinha argumentos contra todas as negativas; era insistente, sem ser mal-educado. Acabei ficando com o saquinho de amendoim, menos pela vontade de comer e mais em respeito à sua perseverança. Saí dali com um misto de admiração e tristeza, sabendo que ele e muitos outros como ele, por esse enorme Brasil, nunca terão a oportunidade de dar vazão a todo o seu potencial, pois lhe faltará a formação educacional para tal. Inteligência é um traço genético, distribuído pela natureza de forma uniforme entre pobres e ricos. Mas a educação não; sua má repartição entre os brasileiros é a principal causa da elevada concentração de renda do país, e de por que esta tende a se perpetuar, já que são as famílias mais ricas que têm condição de mandar suas crianças e jovens para escolas particulares, em média melhores do que as públicas. É papel do setor público mudar esse quadro, igualando as oportunidades educacionais de todos os brasileiros. Para isso, o gasto público com educação precisa ser maior com as crianças pobres do que com as ricas, cujas famílias podem financiar seus estudos. Isso já começou a ocorrer na educação básica, mas está longe de ser realidade no ensino superior. Relatório do Ministério da Fazenda mostra, por exemplo, que cerca de 80% das crianças que freqüentam as pré-escolas da rede pública pertencem às famílias situadas na metade inferior da distribuição de renda. Já nas universidades públicas, mais da metade dos alunos são das famílias 20% mais ricas. Como o setor público gasta três vezes mais com o ensino superior do que com a educação infantil - o gasto por aluno universitário é 12 vezes aquele com crianças na educação infantil -, é fácil ver como o governo ainda dá um alto subsídio educacional às camadas mais ricas da população. O principal benefício de se estabelecerem cotas reservando 50% das vagas nas universidades federais para alunos oriundos da rede pública é que isso irá melhorar a distribuição dos subsídios públicos à educação, ajudando a equalizar oportunidades. De fato, por este prisma, o correto seria elevar essa cota a 100%. Essa é, portanto, uma reforma justa e na direção certa. Mas será ela a melhor opção?

A gratuidade universal no ensino público superior deveria acabar, cobrando de quem pode pagar e dando bolsa a quem de fato é pobre

A resposta é não. Há problemas sérios com essa reforma e alternativas melhores para se atingir o mesmo objetivo. Um dos pontos fracos é que o sistema de cotas é ineficiente em termos de focar o gasto público nos realmente pobres. Os alunos da rede pública são, em média, mais pobres que os das escolas particulares, mas é razoável esperar que, dos alunos cotistas, os com melhor desempenho no concurso de admissão às universidades federais venham a ser os de maior renda. As cotas simplesmente transferirão os subsídios públicos dos mais ricos para os menos ricos. Os números ajudam a ilustrar esse ponto. Anualmente concluem o ensino médio na rede pública mais de 1 milhão e meio de alunos, para uma população de 3,8 milhões de jovens com 18 anos de idade, que concorrerão a pouco mais de 50 mil vagas criadas pelo sistema de cotas nas universidades federais, dando a cada um uma chance em 30 de ser selecionado. Qual a chance do rapaz de Travessão, morador em uma pequena cidade do interior baiano, conseguir uma dessas vagas, competindo com alunos como os que freqüentam escolas federais como os Colégios de Aplicação, Pedro II etc? A introdução das cotas também custará alto em termos de perda de qualidade do ensino (e pesquisa) nas universidades federais, já que haverá um afrouxamento natural das exigências de desempenho dos alunos, para evitar altas taxas de repetência, e uma desvalorização do mérito enquanto critério orientador da vida acadêmica. Até porque o diploma de conclusão de curso não especificará o método de entrada na universidade, esse perderá valor no mercado de trabalho, e com o tempo haverá uma migração dos alunos com melhor formação secundária para boas universidades privadas, que também atrairão os melhores professores. Esse é um resultado clássico em economia: a moeda de menor valor (alunos com pior formação) sempre expulsa do mercado a de mais valor. Depois de um tempo, o sistema de cotas simplesmente fará com que se reproduza no ensino superior a dicotomia hoje prevalecente na educação básica: de um lado, alunos ricos pagando por um bom ensino em universidades privadas, e, de outro, alunos menos ricos em universidades públicas de qualidade inferior. Esse não é um resultado de todo ruim, já que reduziria o caráter regressivo do gasto público e ampliaria a matrícula no ensino superior. Mas essa não é a melhor maneira de se alcançar esse objetivo. Muito melhor seria acabar com a gratuidade universal no ensino público superior, cobrando de quem pode pagar e dando bolsa a quem de fato é pobre. Com os recursos arrecadados se melhoraria a qualidade do ensino médio. Isso faria muito mais sentido do que, como já anunciado, dar às universidades mais recursos para compensar a falta de preparo dos cotistas, o que elevaria ainda mais o gasto com o ensino superior, que já consome 56% do dispêndio federal com educação, aí incluídas as transferências do Fundef, livro e merenda escolar etc. O setor público gasta 0,9% do PIB com ensino superior; se a cobrança de mensalidades permitisse recuperar dois terços desse total, seria possível dobrar o gasto público com o ensino médio, atualmente de 0,6% do PIB, beneficiando todos os alunos da rede pública e chegando mais perto de equiparar as chances efetivas de acesso à universidade. Quem sabe aí o rapaz de Travessão poderia ir além de vender amendoim em posto de gasolina.