Título: NAÇÃO IMPOSSÍVEL
Autor: Cristovam Buarque
Fonte: Valor Econômico, 18/03/2006, OPINIÃO, p. 7

Neste começo de século, não existe mapa ideológico, só ruínas de ¿ismos¿. A política caminha sobre um território bombardeado pelas mudanças dos anos 80 e 90. Para ser compreendido, cada conceito requer adjetivação. Serpenteando por cada país, uma ¿cortina de ouro¿ substituiu a ¿cortina de ferro¿, separando não mais ideologias ou regimes, mas grupos sociais: incluídos e excluídos, ricos e pobres. O capitalismo se fez o sistema que, na liberdade política e comercial, usa o poder dos grupos organizados para atender ao egoísmo dos seus filiados, enquanto a parcela pobre é empurrada para a apartação em escala global. O socialismo foi o sistema que abdicou da liberdade individual, e não conseguiu ser eficiente na economia. Com o fim das utopias criadas no século XIX, os partidos ficaram parecidos: a direita politicamente democrática, a esquerda socialmente conservadora. As duas se igualaram. Entretanto, há diferenças sutis, que afloram com a adjetivação. A direita é formada por dois grupos. Um que possui sentimento republicano e, além de ser politicamente democrático, tem preocupação social, defende políticas públicas que combatam a tragédia da pobreza. Outro que esgota suas crenças na defesa do processo político democrático e, como a aristocracia do Império, despreza o problema social, considera desigualdade e pobreza como fatos naturais. O primeiro grupo é a direita contemporânea; o segundo, a direita imperial. A esquerda também tem dois grupos. Aqueles que não reconhecem a globalização nem a crise do socialismo, e dividem o mundo entre burguesia e proletariado, sem acreditar em exclusão social nem em políticas sociais. É uma esquerda corporativa. De outro, a esquerda contemporânea que entende a realidade global e a necessidade da responsabilidade fiscal, divide o mundo entre incluídos e excluídos, e tem como bandeira o fim da apartação, por meio de políticas públicas ¿ especialmente educacionais ¿ que igualem as oportunidades entre indivíduos. A direita imperial aceita a exclusão moralmente intolerável; a esquerda classista promete a igualdade democraticamente impossível. Elas se unem na visão da primazia do econômico e no desprezo pelo conceito da exclusão e de políticas públicas. Para uns, os pobres são plebe a ser ignorada; para outros, são lúmpen a ser empregado. A direita e a esquerda contemporâneas se diferenciam porque a primeira imagina que basta a igualdade de oportunidades, com estado mínimo, para que a História acabe em sua utopia capitalista; a segunda acredita que será necessário um Estado forte no setor social, e que no futuro surgirá uma utopia pós-capitalista. Para os que desejam a transformação social, ao lado da democracia política, da responsabilidade fiscal e da convivência com o mundo global, o grande desafio político do Brasil é um movimento dos dois blocos contemporâneos, em uma convergência republicana, para derrubar a ¿cortina de ouro¿ que divide a sociedade brasileira, abolir a apartação e a exclusão social. No final do século XIX, uma convergência desse tipo defendeu e realizou a Abolição. É hora de completá-la, o que não se fez durante o embate secular entre a direita imperial e a esquerda classista. Vinte anos depois de ter sua democracia política implantada, o Brasil não deu qualquer passo significativo para superar a divisão social da apartação. O grande desafio das próximas décadas é superar a tragédia da desagregação social, provocada pelo desenvolvimento excludente que caracteriza toda a História do Brasil, desde a escravidão. Essa superação só será conseguida por meio de políticas públicas, especialmente para a educação, e com a continuidade dessas políticas pelos diversos governos que se sucedam. A arena do debate entre os dois grupos será a elaboração de um orçamento equilibrado, mas também justo e eficiente. Para garantir investimentos que assegurem, em poucos anos, o acesso de todos aos bens e serviços essenciais. Entre esses bens e serviços, a educação básica tem papel especial, porque é o principal vetor do aumento da produtividade e da conquista de igualdade de oportunidades. Os adversários serão os grupos organizados, insensíveis à miséria e arraigados a seus privilégios. Precisaremos garantir que a educação básica seja assunto nacional e estratégico, nem municipal, nem estadual, nem de qualquer partido, nem limitado a um governo, e que receba os recursos necessários e a dedicação de todos. Que sejam definidos padrões mínimos para todas as escolas públicas do país, com horário integral, independentemente da cidade onde vivam e da classe social a que pertençam seus alunos, assim como mais recursos federais. Isso exige uma Lei Federal de Responsabilidade Educacional para todos governantes. Acima de tudo, exige um acordo nacional histórico, que vá além do horizonte de cada governo, e se transforme em compromisso da vida nacional: uma convergência republicana Se isso for impossível, como muitos acreditam, é porque o Brasil é uma nação impossível.