Título: A face esquecida da eleição estadual
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2006, Política, p. A10

O noticiário político está demasiadamente concentrado na sucessão presidencial. Haverá outras quatro disputas - para deputado estadual, governador, deputado federal e senador - e por ora elas são praticamente ignoradas pela mídia. Pode-se argumentar que a eleição nacional é a mais importante, e por isso merece maior cobertura. Esta afirmação não condiz com o enorme peso que as questões e alianças regionais têm nas estratégias dos candidatos à Presidência da República. Os melhores veículos da imprensa escrita já perceberam isso. Ainda assim, o pleito estadual é analisado pelos grandes jornais e revistas por seus efeitos na disputa nacional, negligenciando o tema mais importante para os cidadãos: quais projetos de políticas públicas estão em jogo na competição por postos nas Assembléias Legislativas e, principalmente, na luta pelas governadorias? Já havia escrito sobre o papel secundário dado às eleições estaduais pela mídia, em artigo publicado no Valor Econômico em 2002 - e de lá para cá, pouca coisa mudou na cobertura jornalística. Na época, afirmava que os governadores eleitos teriam um papel essencial para consolidar a responsabilidade fiscal - os quais, salvo raras exceções, cumpriram bem este papel. Ressaltava, acima de tudo, que a imprensa e os eleitores teriam que prestar mais atenção na disputa para deputado estadual. A negligência da opinião pública em relação às Assembléias Legislativas produzia parlamentares omissos frente aos desmandos de governadores e/ou máfias corruptas, como a do Espírito Santo. Também não houve no último quadriênio (2003-2006) um aumento substantivo da fiscalização social sobre as Assembléias, e o escândalo ocorrido em Rondônia mostra que o valerioduto e afins não começam em Brasília. Atente, caro leitor, para o seguinte fato: enquanto no Congresso Nacional penas políticas foram imputadas a alguns dos responsáveis pela crise de 2005, os principais líderes da máfia de Rondônia escaparam ilesos. Mas o próximo período governamental nos estados tem uma peculiaridade que deveria ser observada atentamente pela imprensa e pelos eleitores. A partir de uma enorme crise fiscal, iniciada em meados dos anos 1990, os governos estaduais foram obrigados a fazer um ajuste financeiro. Além de cortar gastos, precisaram encontrar formas de gestão mais eficientes. O uso crescente e disseminado do governo eletrônico é o maior destaque neste campo. A necessidade de melhorar o desempenho numa era de escassez levou muitos governos estaduais, para além da questão da eficiência, a realizar mudanças na gestão de pessoal, estrutura administrativa e atendimento aos cidadãos. Alguns deles avançaram mais e reformularam o conjunto da Administração Pública. Para quem quer conhecer um balanço dessas experiências, recomendo o Seminário Avanços e Perspectivas da Gestão Pública dos Estados, que ocorrerá na Fundap, de São Paulo, nos dias 8,9 e 10 de março. Na mesma linha, o trabalho do PNAGE, realizado em parceria entre o Governo Federal e os estados, traçou um mapa exaustivo destas inovações institucionais - um livro contendo esta radiografia deverá sair ainda este ano, em publicação da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Só que nem tudo são flores. Há muitos problemas de gestão nos estados e a maioria das administrações terá de ser reformulada intensamente nos próximos dez anos. Mas a grande questão é: reformar os governos estaduais para que sentido? Dito de outro modo, as unidades estaduais vivem uma crise de identidade, pois não sabem bem quais papéis e funções devem ocupar dentro da Federação brasileira.

Estados vivem uma crise de identidade

Três fatos geraram esta situação. O primeiro foi a grande descentralização que o país realizou desde a redemocratização, corporificada em seus princípios na Constituição de 1988. O resultado foi o reforço do municipalismo, garantindo ao poder local recursos e poder administrativo para atuar autonomamente em uma série de áreas. Isto não quer dizer que os governos estaduais não tenham influência sobre os municípios, até porque muitos deles ainda dependem de dinheiro e/ou de ações da administração estadual. Porém, a maneira como estas relações intergovernamentais devem ser articuladas permanece bastante indefinida. Soma-se a este fato o crescimento desordenado e acelerado das Regiões Metropolitanas e de conurbações em centros urbanos mais novos. Neste espaço, os governos estaduais não sabem exatamente como atuar, seja pelo conflito político com os prefeitos das grandes cidades, seja pela fragilidade dos mecanismos de cooperação. Ressalte-se que o Governo Federal também têm dificuldades de realizar programas nestes aglomerados metropolitanos. A questão que mais deixou os estados atônitos foi a reformulação do papel da União em diversas políticas públicas. Em reação a um processo de descentralização que, virtudes à parte, foi bastante desordenado, por vezes até predatório, a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso iniciou um processo de busca de maior coordenação das políticas sociais, algumas vezes levando à centralização de funções. O Governo Lula, em boa medida, continuou este processo, aprofundado em particular com o Bolsa-Família, que gerou relações mais diretas entre a União e os municípios, com os estados ficando "no meio", com papéis indefinidos. Este dilema foi recentemente analisado, com grande acuidade, por José Roberto Afonso ("Novos Desafios à Descentralização Fiscal no Brasil: as políticas sociais e as de transferência de renda"). Aos próximos governadores e deputados estaduais caberá redefinir as funções dos estados no federalismo brasileiro. São muitas as questões envolvidas, e não é possível analisar todas neste espaço. Ressalto apenas que os governos estaduais precisam dividir o papel de coordenação federativa com a União. Não será uma tarefa fácil, mas ela é de grande importância para melhorar a qualidade das políticas públicas do país. E é este tipo de assunto que a imprensa deveria discutir, para que os leitores-eleitores não fiquem esperando que um presidente imperial resolva todos os problemas brasileiros.